Eu
bem que poderia, mas não vou mencionar o célebre caso de ejaculação pública que
monopolizou o noticiário, notadamente depois de o juiz soltar o estuprador, num
evidente caso de leitura positivista da lei. Prefiro a crônica machadiana de
1861, que, à época, já dava conta dos pífios discursos no senado. Vá lá, não é
de hoje que em matéria de mediocridade atingimos a profundeza dos mares, o que
explica muito da tristeza que sentimos. Pois bem, Machado referia-se aos “discursos
notáveis” ejaculados pelo senador Penna, donde o pedigree da casta política.
Também
não faço qualquer referência à cerimônia conduzida pela ministra do Supremo
Cármen Lúcia, em que apresenta a justiça em números. Os números, pautados por
certa transparência - e aí, acho, eis um pequeno inconveniente para a justiça
-, não deixam mentir e revelam que míseros 30% - ou quase - dos processos que
chegam à justiça são efetivamente julgados. Eis a razão, acredito, de certo
matiz de nossa sociedade, pautada pela impunidade. Sou indiferente, ainda, à
fala territorialista do ministro Luiz Fux, aplaudido por uma plateia
corporativista ao ressaltar que se deve proteger a justiça contra as críticas recentes,
nas quais os números surgem como resultado da ineficiência jurídica.
Não
falo de nada disso. Decidi-me, pelo contrário, falar dos especialistas da
internet, sobretudo porque o episódio ejaculatório despertou ânimos e todos
opinaram com conhecimento de causa. Falar sobre tudo como se tivesse ampla
sabedoria do todo não é prática recente. Há muito que não só a retórica
alimenta-se do pseudoconhecimento, mas também professores, palestrantes,
escritores e especialistas que têm opinião formada sobre tudo.
A
obra de Pierre Bayard, publicada há mais de uma década, coloca luz sobre essa
prática corrente e surge como um pequeno manual de malandragem. Tratando-se da
leitura, ainda que vivêssemos um milênio, dificilmente leríamos todos os livros
publicados, sobretudo porque, dizem os especialistas, por volta de três mil
deles aparecem todos os dias.
O
leitor contumaz conhece o território que adentro: trata-se daquele em que, na
melhor das ocasiões, sofremos uma censura silenciosa. Para isso, basta nos
deslocarmos entre as prateleiras de uma biblioteca. A despeito da cobrança
social (Nossa, você não leu Dostoievski??!!!), esse sentimentozinho que nos
recrimina e nos compele a pensar que devemos ler tudo, sugere ainda que devemos
nos envergonhar por não ter lido este ou aquele autor.
Mentir,
nesses casos é uma das alternativas, mas isto pode nos trazer complicações;
tudo depende de nosso interlocutor, que, vá lá, pode ser alguém versado no
autor em questão. Há ainda a
possibilidade de conhecer a obra por vias indiretas: resumos, crítica, amigos,
a posição que o livro ocupa em catálogos, comentários de especialistas na
internet, a Wikipédia...
Podemos
ainda seguir à risca o que disse Schopenhauer: “Para ler o bom, uma condição é
não ler o ruim: porque a vida é curta, e o tempo e a energia, escassos.” Donde,
pressupomos que é imperativo certa seleção e recorte na grande biblioteca, caso
queiramos constituir uma coletânea pessoal.
Como falar dos livros que não
lemos, do francês que mencionei logo acima,
maliciosamente nos fornece alguns truques de sobrevivência no mundo dos especialistas,
além de algumas formas de apreciar um livro. Os afeitos à malandragem, bem,
estes não vão extrair dali nada mais que um incentivo à fraude intelectual,
tais os alunos experts em control C-control V.
Bayard,
especialista em literatura francesa, fornece algumas técnicas para o bom
malandro e também ao especialista em falar sobre livros que nunca leu: 1) não
tenha vergonha: quem não tem lá certa lacuna de conhecimento em sua formação?
Não se envergonhe se o sujeito ao seu lado começar a falar de uma obra que você
não conhece; isso não quer dizer que ele seja mais especialista que você; 2)
imponha suas opiniões: afinal, opiniões são subjetivas, arbitrárias. Fale bem
ou fale mal de um livro, mas fale com convicção! Ninguém há de desconfiar de
você; 3) invente livros: há coisa mais falível que a memória? Quem já não foi
traído por ela? Você pode falar com tranquilidade sobre personagens, criar
episódios, reproduzir comentários de críticos sobre a obra e até mesmo falar de
autores que não existem. Caso dê de cara com um especialista, diga que sua
memória o confundiu; 4) fale de si mesmo: fale do significado que o livro ou o
autor tem para você, mesmo que não os tenha lido. Oscar Wilde disse que a
crítica literária é uma forma de biografia, leve isto a sério!
Por
fim, tranquilize-se: a exigência de ler todos os livros da grande biblioteca é
irreal. As quase-leituras, para Bayard, são tão produtivas quanto uma leitura total.
Afinal, que cabeça a nossa! Ler um livro em sua completude é algo impossível, uma
vez que somos traídos por nossas limitações; não por outra razão os
especialistas afirmam que o esquecimento entra em ação logo após a leitura de
uma página, de modo que ao ler a seguinte, já teremos esquecido a anterior. Com
o tempo, embaralhamos obras, autores, personagens e episódios, isto quando não
os esquecemos totalmente! Assim, falamos não deste ou daquele livro, mas de uma
lembrança imprecisa, imperfeita e tortuosa que guardamos das obras. Portanto,
leitor, tranquilize-se!
Eu
bem que poderia, mas também não vou mencionar a célebre fortuna encontrada no
apartamento do Geddel, o escroto bandido republicano!
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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