Revista Philomatica

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Especialistas e malandros literários


Eu bem que poderia, mas não vou mencionar o célebre caso de ejaculação pública que monopolizou o noticiário, notadamente depois de o juiz soltar o estuprador, num evidente caso de leitura positivista da lei. Prefiro a crônica machadiana de 1861, que, à época, já dava conta dos pífios discursos no senado. Vá lá, não é de hoje que em matéria de mediocridade atingimos a profundeza dos mares, o que explica muito da tristeza que sentimos. Pois bem, Machado referia-se aos “discursos notáveis” ejaculados pelo senador Penna, donde o pedigree da casta política.
Também não faço qualquer referência à cerimônia conduzida pela ministra do Supremo Cármen Lúcia, em que apresenta a justiça em números. Os números, pautados por certa transparência - e aí, acho, eis um pequeno inconveniente para a justiça -, não deixam mentir e revelam que míseros 30% - ou quase - dos processos que chegam à justiça são efetivamente julgados. Eis a razão, acredito, de certo matiz de nossa sociedade, pautada pela impunidade. Sou indiferente, ainda, à fala territorialista do ministro Luiz Fux, aplaudido por uma plateia corporativista ao ressaltar que se deve proteger a justiça contra as críticas recentes, nas quais os números surgem como resultado da ineficiência jurídica.
Não falo de nada disso. Decidi-me, pelo contrário, falar dos especialistas da internet, sobretudo porque o episódio ejaculatório despertou ânimos e todos opinaram com conhecimento de causa. Falar sobre tudo como se tivesse ampla sabedoria do todo não é prática recente. Há muito que não só a retórica alimenta-se do pseudoconhecimento, mas também professores, palestrantes, escritores e especialistas que têm opinião formada sobre tudo.  
A obra de Pierre Bayard, publicada há mais de uma década, coloca luz sobre essa prática corrente e surge como um pequeno manual de malandragem. Tratando-se da leitura, ainda que vivêssemos um milênio, dificilmente leríamos todos os livros publicados, sobretudo porque, dizem os especialistas, por volta de três mil deles aparecem todos os dias.
O leitor contumaz conhece o território que adentro: trata-se daquele em que, na melhor das ocasiões, sofremos uma censura silenciosa. Para isso, basta nos deslocarmos entre as prateleiras de uma biblioteca. A despeito da cobrança social (Nossa, você não leu Dostoievski??!!!), esse sentimentozinho que nos recrimina e nos compele a pensar que devemos ler tudo, sugere ainda que devemos nos envergonhar por não ter lido este ou aquele autor.
Mentir, nesses casos é uma das alternativas, mas isto pode nos trazer complicações; tudo depende de nosso interlocutor, que, vá lá, pode ser alguém versado no autor em questão.  Há ainda a possibilidade de conhecer a obra por vias indiretas: resumos, crítica, amigos, a posição que o livro ocupa em catálogos, comentários de especialistas na internet, a Wikipédia...
Podemos ainda seguir à risca o que disse Schopenhauer: “Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta, e o tempo e a energia, escassos.” Donde, pressupomos que é imperativo certa seleção e recorte na grande biblioteca, caso queiramos constituir uma coletânea pessoal.
Como falar dos livros que não lemos, do francês que mencionei logo acima, maliciosamente nos fornece alguns truques de sobrevivência no mundo dos especialistas, além de algumas formas de apreciar um livro. Os afeitos à malandragem, bem, estes não vão extrair dali nada mais que um incentivo à fraude intelectual, tais os alunos experts em control C-control V.  
Bayard, especialista em literatura francesa, fornece algumas técnicas para o bom malandro e também ao especialista em falar sobre livros que nunca leu: 1) não tenha vergonha: quem não tem lá certa lacuna de conhecimento em sua formação? Não se envergonhe se o sujeito ao seu lado começar a falar de uma obra que você não conhece; isso não quer dizer que ele seja mais especialista que você; 2) imponha suas opiniões: afinal, opiniões são subjetivas, arbitrárias. Fale bem ou fale mal de um livro, mas fale com convicção! Ninguém há de desconfiar de você; 3) invente livros: há coisa mais falível que a memória? Quem já não foi traído por ela? Você pode falar com tranquilidade sobre personagens, criar episódios, reproduzir comentários de críticos sobre a obra e até mesmo falar de autores que não existem. Caso dê de cara com um especialista, diga que sua memória o confundiu; 4) fale de si mesmo: fale do significado que o livro ou o autor tem para você, mesmo que não os tenha lido. Oscar Wilde disse que a crítica literária é uma forma de biografia, leve isto a sério!
Por fim, tranquilize-se: a exigência de ler todos os livros da grande biblioteca é irreal. As quase-leituras, para Bayard, são tão produtivas quanto uma leitura total. Afinal, que cabeça a nossa! Ler um livro em sua completude é algo impossível, uma vez que somos traídos por nossas limitações; não por outra razão os especialistas afirmam que o esquecimento entra em ação logo após a leitura de uma página, de modo que ao ler a seguinte, já teremos esquecido a anterior. Com o tempo, embaralhamos obras, autores, personagens e episódios, isto quando não os esquecemos totalmente! Assim, falamos não deste ou daquele livro, mas de uma lembrança imprecisa, imperfeita e tortuosa que guardamos das obras. Portanto, leitor, tranquilize-se!
Eu bem que poderia, mas também não vou mencionar a célebre fortuna encontrada no apartamento do Geddel, o escroto bandido republicano!


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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