Revista Philomatica

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Sintropia literária


Stendhal confessou haver escrito um de seus livros para cerca de cem leitores, modéstia que Machado ironiza e, desta feita, não deixa por menos: arrisca cinco leitores para as célebres memórias post-mortem de Brás Cubas. Eu, que não sou presunçoso nem nada, e não vislumbro panteão outro que não seja a campa, dispenso likes em proveito de um mísero leitor. Justamente por isso dou-me o direito, a partir de agora, de dizer mediocridades tantas quantas as que tenho lido.

Vá lá! À guisa de exemplo tomo o mundinho que circunda à minha volta, que hora ou outra se mete a falar de literatura sob a égide cristã, preocupado em separar o joio do trigo com base na leitura de um ou dois papas multiculturalistas. Leio o que leio e me obrigo à repetição, até mesmo fazendo uso de certo parafraseio!
Putain! Os expertises do multiculturalismo repetem o leitor semântico ao tecer elogios e críticas e mais críticas, na grande maioria das vezes (perdoem-me, o pleonasmo é necessário!), sem terem se dado ao trabalho de ler as obras. Aliás, a moda perdura já há algum tempo nos estudos literários, em que a ênfase recai sobre a teoria, com menosprezo da ficção.

E você, leitor, não se adiante! Não estou a dizer que não se deve ler teoria, militar em prol da literatura dos países colonizados, da literatura de gênero e afins. Penso que devemos praticar a sintropia literária (o termo é meu, registre-se, que apropriei de Ernest Gotsch, versado em agricultura!). Isto posto, vejo que muitos multiculturalistas insistem em praticar a entropia, apostando na terra arrasada!

A literatura como meio de denúncia colonialista é válida e deve ser praticada, contudo, o cultivo é mais produtivo quando se opta pela diversidade de espécies. Gotsch prova isso na agricultura, por que não copiarmos ideia tão produtiva e transplantarmo-la para a esfera literária? Por que, obrigatoriamente, tenho que exterminar o cânone em proveito de uma pseudo-originalidade, sabidamente inexistente? A originalidade vem do estranhamento que a obra provoca, às vezes, pelo simples fato de jamais podermos assimilá-la por completo, já dizia Bloom. Então, porque “fundar” um idealismo em busca de uma justiça social e de uma harmonia que sabemos ser utópica? Não digo que a harmonia social não deva existir e que não devemos sair em busca de uma maior compreensão entre povos e raças; insisto é na importância do pluralismo de ideias, ainda que muitas delas permaneçam para serem refutadas, usadas como contrapontos, fortalecendo as que crescem entre as hortaliças, à sombra das leiras de grandes árvores.

Ora, fala-se em “alta literatura”, condenando-a; ao fazê-lo, esquecem-se os ressentidos de que até mesmo a literatura forte, o cânone, só é o que é porque sofreu o processo aflitivo da influência. A grande literatura reescreve velhas obras – sempre – sem se esquecer de abrir espaço para o eu, de modo que materializa novos sofrimentos e angústias.

Hoje, surgem desmemoriados a torto e a direito: esquecem-se de que a memória, ainda que involuntária é uma arte. Por que insistem então em apagar o pouco que sobrou? É europeu, é homem, é branco? Joga fora no lixo! Pratiquemos a sintropia literária, meus caros! Não se esqueçam de que o estético é mais uma preocupação individual que de sociedade.

Um romance é um extrato das perturbações humanas que ganha a página em branco, portanto, ali estão alegrias e medos, sobretudo o medo da morte. Ora, eis aí um de nossos medos que adentram a memória comum e que, na literatura, busca status canônico. Esquecer o valor estético é perigoso! Ao esquecê-lo não reconhecemos a arte, não a experimentamos e, ao não degustá-la, atrofiamos nossas sensações e percepções!

Ave Homero! Ave Virgílio! Ave Dante! Ave Machado!


 


 


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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