Revista Philomatica

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Assassinato no Expresso do Oriente

O hábito não faz o monge, diz o ditado. Caso o fizesse, ao escrever essas garatujas, mais uma vez eu estaria a criticar a canalhice com que se faz a grande imprensa. Porém, olhei para o lado e não tive como ignorar a tristeza da vida que se acaba entre a juventude, marcada pelo episódio de ontem, em que a jovem fez da janela um cadafalso.
Refleti sobre a desesperança e lembrei-me de grandes poetas cuja saída não foi diferente. Veio-me ao espírito Maiakovski, sobretudo porque esta manhã vi a foto do poeta com seu cachorro Pouchkino nos braços, e também porque, ao meu lado, enquanto escrevo, obrigo-me a um movimento pendular das mãos que ora recaem sobre o teclado, ora deslizam sobre o dorso da Colette, companheira que, carinhosamente, tem procurado curar-me da tristeza que ainda me assalta ao lembrar-me do Pierre. Mas, deixemos o quotidiano de lado. Adentremos a ficção. Nesses tempos de férias, releio, por prazer, uma obra da infância. À medida em que avanço pelos capítulos, os dias de menino refrescam-me a alma. Traço paralelos, faço comparações, resgato impressões, relembro o que imaginava, constato o caminho percorrido, repenso os desvios, o tempo que ora considerava perdido, mas, hoje, resignado, julgo ter sido um ganho.
Trata-se, leitor, de O Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. Na França, antes de ser publicado na Coleção Le Masque, em 1934, o romance foi publicado em folhetim nas páginas do jornal Excelsior. À época, é claro, Christie ainda não tinha a alcunha de a Rainha do Crime, mas já havia escrito dezessete romances, dentre os quais, oito já traziam Hercule Poirot, seu detetive favorito, e que desfruta até nossos dias de numerosos fãs.
No ano anterior, o Le Petit Journal já havia publicado em folhetim A Morte de Roger Ackroyd. Dessa vez, porém, tratava-se de um texto inédito e o Excelsior anunciava sua publicação para o período de 3 de junho a 14 de julho: “Amanhã: O Assassinato no Expresso do Oriente, grande romance policial de aventuras de Mme Agatha Christie, que é considerada a melhor romancista inglesa de aventuras policiais.”
A tradução em francês ficou aos cuidados de Louis Postif; curiosamente, a mesma que me caiu nas mãos. Ao comentar antes das férias que deixaria de lado as obras teóricas e leria Christie, uma colega de trabalho retrucou com certo desdém: “Prefiro Shakespeare.” Como não gostar de Shakespeare, pensei, sobretudo depois de ler Bloom, que ela também não gosta? Mas, não nego, gosto de um bom folhetim!
Assim, como não gostar de Christie? Ora, o primeiro parágrafo é como a cortina do espetáculo que se desvela à vista do espectador. De resto, é subir no trem e começar a viagem, pois tudo começa assim: “Eram às cinco horas de uma manhã de inverno na Síria. Ao longo da plataforma de Aleppo, estacionava o comboio pomposamente anunciado nos guias turísticos como Taurus Express. [...] À subida para a vagão-dormitório, um jovem tenente francês, elegantemente fardado, conversava com um homenzinho, agasalhado até as orelhas, o que lhe deixava ver só o nariz vermelho e as pontas do bigode curvo, voltado para cima.”
O Assassinato no Expresso Oriente é um desses romances perfeitos cujo grande mote é o enigma - o tal do whodunit - tão caro aos ingleses: um crime em que todas as personagens são suspeitas e as pistas são destiladas ao leitor, uma a uma, aos poucos, até o grande desenlace, por Hercule Poirot, o homenzinho de bigode curvo.
O romance tem em sua estrutura um dado singular, já que se baseia em fatos reais. O argumento em torno da vítima, o americano Ratchett, foi em grande parte inspirado em um caso objeto de muita discussão havia apenas dois anos: o sequestro e o assassinato do filho do aviador americano Charles Lindbergh.
Quanto à imobilização do trem, pano de fundo e ingrediente essencial para o quadro, vem de um incidente ocorrido alguns anos antes na Turquia, no qual os passageiros do Simplon Orient Express ficaram isolados do mundo por seis dias.
No mais, a narrativa é convidativa sobretudo ao leitor semântico, habituado a algumas obviedades, porém, nada que desmereça as boas horas de viagem no Expresso. Por fim, vale destacar que o romance continua bem vivo e acaba de ganhar nova versão nas telas do cinema, com a obra de Kenneth Branagh.

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