O
hábito não faz o monge, diz o ditado. Caso o fizesse, ao escrever essas garatujas,
mais uma vez eu estaria a criticar a canalhice com que se faz a grande
imprensa. Porém, olhei para o lado e não tive como ignorar a tristeza da vida
que se acaba entre a juventude, marcada pelo episódio de ontem, em que a jovem fez
da janela um cadafalso.
Refleti
sobre a desesperança e lembrei-me de grandes poetas cuja saída não foi
diferente. Veio-me ao espírito Maiakovski, sobretudo porque esta manhã vi a
foto do poeta com seu cachorro Pouchkino nos braços, e também porque, ao meu
lado, enquanto escrevo, obrigo-me a um movimento pendular das mãos que ora
recaem sobre o teclado, ora deslizam sobre o dorso da Colette, companheira que,
carinhosamente, tem procurado curar-me da tristeza que ainda me assalta ao
lembrar-me do Pierre. Mas, deixemos o quotidiano de lado. Adentremos a ficção.
Nesses tempos de férias, releio, por prazer, uma obra da infância. À medida em
que avanço pelos capítulos, os dias de menino refrescam-me a alma. Traço
paralelos, faço comparações, resgato impressões, relembro o que imaginava,
constato o caminho percorrido, repenso os desvios, o tempo que ora considerava
perdido, mas, hoje, resignado, julgo ter sido um ganho.
Trata-se,
leitor, de O Assassinato no Expresso do
Oriente, de Agatha Christie. Na França, antes de ser publicado na Coleção Le Masque, em 1934, o romance foi
publicado em folhetim nas páginas do jornal Excelsior.
À época, é claro, Christie ainda não tinha a alcunha de a Rainha do Crime, mas já havia escrito
dezessete romances, dentre os quais, oito já traziam Hercule Poirot, seu
detetive favorito, e que desfruta até nossos dias de numerosos fãs.
No
ano anterior, o Le Petit Journal já
havia publicado em folhetim A Morte de
Roger Ackroyd. Dessa vez, porém, tratava-se de um texto inédito e o Excelsior anunciava sua publicação para
o período de 3 de junho a 14 de julho: “Amanhã: O Assassinato no Expresso do Oriente, grande romance policial de
aventuras de Mme Agatha Christie, que é considerada a melhor romancista inglesa
de aventuras policiais.”
A
tradução em francês ficou aos cuidados de Louis Postif; curiosamente, a mesma
que me caiu nas mãos. Ao comentar antes das férias que deixaria de lado as
obras teóricas e leria Christie, uma colega de trabalho retrucou com certo desdém:
“Prefiro Shakespeare.” Como não gostar de Shakespeare, pensei, sobretudo depois
de ler Bloom, que ela também não gosta? Mas, não nego, gosto de um bom
folhetim!
Assim,
como não gostar de Christie? Ora, o primeiro parágrafo é como a cortina do
espetáculo que se desvela à vista do espectador. De resto, é subir no trem e
começar a viagem, pois tudo começa assim: “Eram às cinco horas de uma manhã de
inverno na Síria. Ao longo da plataforma de Aleppo, estacionava o comboio
pomposamente anunciado nos guias turísticos como Taurus Express. [...] À subida
para a vagão-dormitório, um jovem tenente francês, elegantemente fardado,
conversava com um homenzinho, agasalhado até as orelhas, o que lhe deixava ver
só o nariz vermelho e as pontas do bigode curvo, voltado para cima.”
O
Assassinato no Expresso Oriente é um
desses romances perfeitos cujo grande mote é o enigma - o tal do whodunit - tão caro aos ingleses: um
crime em que todas as personagens são suspeitas e as pistas são destiladas ao
leitor, uma a uma, aos poucos, até o grande desenlace, por Hercule Poirot, o
homenzinho de bigode curvo.
O
romance tem em sua estrutura um dado singular, já que se baseia em fatos reais.
O argumento em torno da vítima, o americano Ratchett, foi em grande parte
inspirado em um caso objeto de muita discussão havia apenas dois anos: o sequestro
e o assassinato do filho do aviador americano Charles Lindbergh.
Quanto
à imobilização do trem, pano de fundo e ingrediente essencial para o quadro, vem
de um incidente ocorrido alguns anos antes na Turquia, no qual os passageiros
do Simplon Orient Express ficaram
isolados do mundo por seis dias.
No
mais, a narrativa é convidativa sobretudo ao leitor semântico, habituado a
algumas obviedades, porém, nada que desmereça as boas horas de viagem no Expresso. Por fim, vale destacar que o romance
continua bem vivo e acaba de ganhar nova versão nas telas do cinema, com a obra
de Kenneth Branagh.
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