Treslendo
a biografia de Machado de Assis escrita por R. Magalhães Júnior, observei as
referências do autor às crônicas machadianas. As alusões, no caso, eram as
cantoras de ópera que empolgavam o público carioca na segunda metade do século
XIX. Um contumaz leitor do Bruxo do Cosme Velho, sem dúvida há de se lembrar da
Candiani, que arrebatava almas e corpos e fizera com que os cavalos de seu
carro fossem substituídos por rapazes saídos de um fã clube entusiasta. Depois,
vieram a Stoltz, a Charton, a Lagrange, a Casolini, a La Grua... Todas passaram
pela pena de Machado.
Portanto,
não há razão para que eu não fale de nossas atuais celebridades, ainda que sob
os auspícios da canção: descendo a
ladeira. Ora, o assunto me veio ao espírito depois de ler a publicação de
um amigo. Nela, havia uma lista dos cantores que costumávamos ouvir nas décadas
oitenta e noventa e o que se costuma ouvir hoje. Come de praxe, o mais
interessante nesse tipo de comparação é a opinião dos internautas, em geral,
marcada por profunda obtusidade. E, nesse caso, não foi diferente. Abstive-me
de qualquer comentário, haja vista tratar-se de uma página pessoal e não conhecer
o autor do comentário que me leva a essa rápida reflexão.
Pois
bem, em consonância à polarização e ao vitimismo atual, um jovem tascou a
seguinte pérola: “Isso só mostra que a arte
acima de tudo não tem a necessidade de ser bela, mas de servir como voz além de
entreter. Incomoda tanto assim aos privilegiados que os marginalizados ganhem
voz? As vanguardas, ainda que movimentos elitistas, não ensinaram nada
para a literatura? Triste quem pensa pequeno...”.
Ora, à medida que os anos avançam o respeito à juventude é
algo que não se pode ignorar. Contudo, respeitar não implica
qualquer deferência à sobeja atrofia intelectual de nossos dias, em que o
atraso cultural é uma doença quase que universal. Não sei se o jovem em
questão, cujos neurônios padecem certo estiolamento próprio da idade, estaria disposto a me entender, mas vamos lá: primeiro,
ele afirma que “a arte não tem a necessidade de ser bela”. Não tiro sua razão,
mas peço que se atenha às sábias palavras de filósofos como Sri Ram, por
exemplo, para quem a evolução nada mais é que a depuração do gosto. E vou mais
longe, meu caro efebo: a arte é um
caminho de conhecimento à procura do Belo, do imutável, e a música que você
defende está fadada às lixeiras das gravadoras, preservando-se,
muito raramente, na cabeça de pessoas habituadas à leitura de cartilhas ideológicas cujo
conselho é a repetição e têm como impedimento maior, a reflexão, o questionamento.
Nem toda expressão cultural pode ser chamada de arte, mancebo!
A arte, já afirmava Schopenhauer, é “a exposição de ideias”, “o modo de
consideração das coisas independente do princípio da razão”. Que ideias
veiculam a música que você diz representar os excluídos, que voz concedem elas
aos marginalizados? O relativo direito ao contorcionismo enquanto se afirma ser
uma vadia todo dia? Arte é algo que toca a universalidade humana, revela-se
como inspiração e dá ao homem a experiência subjetiva de reconciliar-se com a
natureza e a liberdade, afirmava Kant.
A liberdade da qual fala Kant não é definitivamente o direito
à lascívia pura e simplesmente. E, já que reclama o fato de as vanguardas não
terem ensinado nada à literatura, aconselho-o a ler Sade. Em Justine ou Os Infortúnios da virtude,
Sade não só faz uma apologia ao crime, como explora de forma exponencial a
crueldade e as liberdades do corpo como do espírito e, se não me falha a
memória, lá, caro mancebo, Sade dedica três ou quatro páginas às vantagens de
se dar o cu. Como vê, a literatura foi além das vanguardas afeitas aos grafites, às quais provavelmente se refere.
Nota-se em sua fala total desconhecimento
do que se passou há apenas uma década! Falta de leitura, suponho! Os
privilegiados que condena por gostarem de Zé Ramalho, Gal Costa, Milton
Nascimento, Renato Teixeira, Legião Urbana, Caetano, se não sabe, meu caro
jovem, lotavam estádios nas décadas de oitenta e noventa; eram jovem
sonhadores, assim como você. Eram filhos de operários e, detalhe, a grande
maioria sequer pode frequentar uma universidade, pois heroicamente tinha que
defender seu bocado de pão. Nem por isso se faziam de vítimas, mas lutavam, assim como os que vieram logo depois lutaram pelas “diretas já”.
Ah!, então não havia privilegiados?! Sim, havia! Muitos,
inclusive, marcharam as trilhas da política e tornaram-se mais privilegiados
ainda; hoje, perfazem as fileiras de nossa elite política, partidária de foros
privilegiados, direitos muitos, mas quase nenhum dever!
É evidente que não são esses os privilegiados que alfineta.
Em seu relativizado discurso, nota-se que lê a cartilha de forma um tanto
estúpida e não se dá conta de que a mesma elite que defende, acreditando
tratar-se de representantes dos marginalizados é aquela que escolhe suas
músicas. E mais: Platão, na República,
alertava para a qualidade da música que os governantes davam às pessoas, sem
falar, é claro, em Plutarco, que já afirmava que música ruim e canções
grosseiras engendram licenciosidade.
Por fim, meu jovem: não maldiga a literatura, leia Sade e
ouça boa música.
Gostei muito do raciocínio.
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