“No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” A
assertiva, de autoria anônima e escrita entre os anos de 90-110 d.C., dá início
ao Evangelho de São João. Como todo texto canônico, cujas origens remontam à
noite dos tempos, a obra está envolta em polêmicas: tome-se, por exemplo, sua
tradução, feito que instituiu uma querela secular entre os exegetas; de um
lado, os que preferem “o Verbo era Deus”, de outro, os que optam por “o Verbo
era Divino”. Afora os desencontros de opinião, é fato que o versículo bíblico
perfilha a ideia da palavra consubstanciada ao discurso, tornando-se
instrumento de expressão de uma ideia.
Palavras
e mais palavras que se organizam e tornam-se discursos – e personagens. Ora,
não por outra razão Sartre afirmava que as mais vívidas e ilustres personagens
literárias não passam de um punhado de palavras organizadas, letras arbitrárias
jogadas sobre o papel, marcas semânticas ora relembradas ad infinitum para prejuízo do autor, ora fadadas ao esquecimento.
Isto
posto, quem não se lembra de Esopo, escravo do nobre Xantós a ponderar sobre a
língua como o melhor e o pior dos pratos. Ao fazê-lo, Esopo afasta do órgão
mucoso sua fisiologia e transforma-o em dado semântico, metafórico. Afinal,
afirma Esopo, “é graças à língua que dizemos o nosso amor”, mas também é essa
mesma “língua que mente, que esconde, que tergiversa, que blasfema, que
insulta, que se acovarda, que mendiga, que impreca, que bajula, que destrói,
que calunia, que vende, que seduz e que corrompe”.
Ora,
ao longo da semana vimos o poder da língua, ainda que a cidadã russa não
conhecesse um ‘a’ do nosso idioma. Um bando de trogloditas acercaram-se da
mulher e, aos gritos, mostraram como a língua pode insultar e blasfemar. E
mais, por meio do insulto e da blasfêmia a língua deu mostras do índice de
caráter e da estupidez daqueles que, insensatos, resolvem fazer uso dela, só
dela, sem se darem conta de que ela está consubstanciada ao discurso e às
ideias, como queria o Evangelista.
A
prova de que Esopo continua moderno e escrevendo melhor que nunca é o fato de a
língua continuar a se acovardar, mendigar e esconder. Explico-me: os
brutamontes que divulgaram o vídeo ofendendo a cidadã russa, descobertos e
expostos à língua ferina da opinião pública, acovardaram-se, quiseram ser
vistos como meninos que não davam conta da ordem da travessura que cometiam e
passaram a mendigar alguma compreensão.
O
caráter escamoteador da língua veio, curiosamente, por meio de muitas mulheres
que resolveram defender a estupidez. Em uma das reportagens publicadas no site
do jornal a serviço dele mesmo – e do Brasil, algumas disseram não acreditar no
porquê de as pessoas se indignaram com a cafajestagem; uma delas, incrédula,
dizia: “Gente, que hipocrisia! Quem nunca ouviu o MC...” Claro! Cada um no seu
quadrado! Para quem vai ao baile funk
sem calcinha e dá o cu de cabeça pra baixo – como diz a “canção”, isso não é
nada!
Mas
a Copa da Rússia tem sido pródiga em intolerância. Acabo de ler sobre um
torcedor israelense perseguido por torcedores muçulmanos da Tunísia e do
Marrocos. É claro que nesse último acontecimento a UOL tentou de todos os modos
justificar a perseguição, afinal, para o portal UOL, a tolerância é seletiva. Israel
não se classificou para a Copa do Mundo, insiste o jornalista que não assinou a
matéria, então, por que raio é que ele estava lá? Dito isto, fica subentendido
que o israelense mereceu as ofensas proferidas pelos africanos.
E,
para concluir, o portal dignamente tem se enfiado goela abaixo a homofobia de
Putin não só porque a “Copa é importante”, mas porque isto lhe rende muiiitos
caraminguás. Panis et circenses!
Beatitudo est communis!
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