Aficionados
por livros, de modo geral, demonstram similar entusiasmo por bibliotecas. Desaparecidas
na poeira do tempo e envoltas em mistério, algumas delas não só trazem
nostalgia, mas também certo pesar à alma. Não há estudioso, bibliófilo ou
erudito que não tenha um dia vislumbrado em espírito a Biblioteca de Alexandria plena de papiros, pinturas e peças
arqueológicas. Relatos afirmam que o maior centro de saber da Antiguidade, hoje
célebre por sua mítica destruição nos tempos de César e Cleópatra, possuía uma
coleção que continha “todos os livros de todos os povos da terra”.
Ainda
que por elas o fogo demonstre a mesma atração que o mais voraz dos ledores, o
intróito, leitor, não tem outro fim que o de trazer algum enlevo ao espírito,
pois as bibliotecas resistem, seja na história, seja nas lendas! Com a Mário de Andrade não poderia ser
diferente. A biblioteca paulistana,
que ganhou algum espaço na imprensa em razão da troca de diretor - ora uma benção,
ora uma fatalidade ao final de cada gestão -, padece de males menores que, no
entanto, atravancam a vida do leitor.
A
título de exemplo, relato alguns percalços por mim vividos na Mário de Andrade: era o ano da graça de
2006, acabara de iniciar meu mestrado e, entusiasmado, propus-me sair à busca de
periódicos oitocentistas. Interessava-me, sobretudo, o contexto político-social
que se avizinhava nas páginas do Diário
do Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias
e tantos outros. Neles, pretendia estudar as crônicas machadianas tal como
haviam sido publicadas.
Em
minha primeira visita à Mário de Andrade,
inexperiente, não sabia exatamente quem deveria procurar para que pudesse ter
acesso aos tais periódicos, nem mesmo se isso se me seria permitido, tratando-se
de documentos raros. Na recepção, senti-me em uma padaria à procura de alfinetes
para alinhavar a barra da calça desfeita. Recebido por funcionários muito
simpáticos e educados, fui direcionado de um para outro sem que obtivesse qualquer
informação.
Dias
depois, via e-mail, soube que em
razão do restauro pelo qual passaria a biblioteca, os periódicos haviam sido
transferidos para a Biblioteca Prefeito Prestes Maia, em Santo Amaro, conhecida
e ainda chamada por todos de Presidente Kennedy.
Chovia
torrencialmente quando me desloquei pela primeira vez a Santo Amaro. Uma vez na
biblioteca, pediram-me que aguardasse a bibliotecária responsável, pois se
tratava de jornais “velhos” e só ela tinha acesso ao repositório de jornais.
Enquanto esperava, presenciei o extremo cuidado com que etiquetavam as dezenas
de livros de arte doados à biblioteca pelo Rotary
Club.
O
processo, razoavelmente simples, consistia em segurar o exemplar, queixar-se do
peso do livro, resmungar muito pelo excesso de trabalho e reclamar pelo que
ainda deveria ser feito após a etiquetagem, até que os livros finalmente fossem
parar nas prateleiras. Às vezes, como se estapeassem o mundo, a etiqueta era
afixada na lombada dos livros, que, posteriormente, eram jogados no chão, agora,
sem qualquer cuidado. Só um leitor contumaz, privado de livros por algum tempo
de sua vida e, em outro, desejoso de ler o que não podia comprar, sabe como
presenciar todo esse esmero lhe afaga o coração!
Voltei
pensando na vida e nos livros que vi amontoados, maltratados e sós; esquecera
até mesmo que havia esperado até o meio-dia pela bibliotecária que não viera.
Na quinta-feira da mesma semana repeti a visita: mais uma manhã de espera. Na terça-feira
seguinte: nova visita, nova espera. Na quinta, a ida já se tornara via-sacra. Sob
a ameaça de que ligaria para a secretária ‘não-sei-das-quantas”, algumas
ligações foram feitas e uma hora depois apareceu a bibliotecária. Comecei por explicar-lhe
a razão de estar ali, quando fui por ela interrompido: “Sinto muito, os jornais
estão no quarto andar, há muitas goteiras e, com essa chuva, nossa!, estão
molhados, não podem ser consultados.” - Eu: ??????? - Ela: Só para saber, qual
é período? - Eu: Séculos XIX e começo do XX, de 1859 a 1904, para ser mais
preciso. - Ela: Ah, mas nós só temos periódicos a partir de 1908. - Eu: Lá na Mário de Andrade não sabiam disso? -
Ela: Sabe como é, por mais que a gente oriente, alguns funcionários parecem
ausentes...
Passados
alguns anos, a Mário de Andrade é
outra! Trocaram a calçada duas vezes, ainda que a primeira estivesse em
perfeito estado; colocaram também um moderno corredor de vidro na fachada do prédio
supostamente histórico, que faz as vezes de aquecedor para a sala de leitura,
sobretudo em dias de sol escaldante.
Ano
passado (2015) voltei à Mário de Andrade
algumas vezes. Em uma delas, interrompi o artigo que escrevia para ir à toilette; ao voltar, fui advertido por
uma funcionária de que deveria ficar atento aos meus pertences quando me
ausentasse. - “Jamais deixe notebooks,
celulares ou mochilas na mesa em que está ocupando; na semana passada tivemos
dois roubos aqui dentro”, disse-me ela. Na toilette,
nova surpresa: moradores de rua dos arredores usam o espaço para banhos;
enquanto um senhor se banhava nas torneiras reservadas para lavar as mãos, o espaço
fora temporariamente interrompido aos frequentadores da biblioteca.
Mas
isso é passado! Dizem que nos últimos meses a biblioteca era um esmero só! Acabo
de ler uma entrevista com Charles Cosac, um dos maiores editores do país, o
novo diretor da Mário. Desejo-lhe
muita boa sorte e espero que sob sua gestão a Mário continue a propalar a notória
referência dos últimos dias, tal a Cosac &
Naify, muito embora na dita entrevista tem-se a impressão de que o Sr. Cosac,
tratando-se da biblioteca, mostra-se um tanto naïf.
O
Sr. Cosac, sabendo que pisa em terreno pantanoso, tratou logo de se proteger,
colocando junto de si uma escultura de seu protetor São Miguel Arcanjo.
Contudo, penso que vencer a burocracia é tão difícil quanto ser tentado no
deserto, haja vista, nas alturas, só um ter direito a sentar-se à direita do
Pai.
O
Sr. Cosac fala de aspectos administrativos, fungos, preservação, refrigeração,
janelas que não abrem... Mas isso, penso eu, sabíamos todos! Quem já passou uma
manhã ao lado do corredor de vidro, provou calor igual ao do sexto círculo do
Inferno. O consolo é que a biblioteca continuará funcionando durante 24 horas.
Até quando? O Sr. Cosac não sabe. Talvez pelo fato de ter sido uma nomeação instantânea,
status QI, procedimento comum na
coisa pública, o Sr. Cosac parece um tanto absorto: “a ideia é digitalizar...”,
“o ideal seria começar...”, “a gente vai ter que criar...”, “até pensei em
fazer uma exposição de orquídeas...”, “a gente vai ter de criar uma rede de
aquisição, de doação...”.
O
Sr. Cosac fala ainda em trabalhar com voluntários. Algo louvável, mas temeroso.
Lembrei-me do furto de obras raras ocorrido na biblioteca em 2006, do
estagiário indiciado, da primeira edição de O
Guarani, posteriormente comprada por um colecionador na Babel Livros... Lembrei-me ainda de
ouvir José Mindlin contar sua aventura para adquirir edição similar...
O
Sr. Cosac anda cheio de ideias. Ainda que não seja um bibliotecário - algo que
ele mesmo afirma -, uma coisa é certa: já está a meio caminho, entende do
riscado: é amante de livros. Desejo-lhe sucesso e vida longa à Mário de
Andrade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário