Revista Philomatica

domingo, 25 de abril de 2010

Voltaire, a Tolerância e o jornal "O Parasita" - publicação anônima e homofóbica dos alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas

A intolerância é de longe a fraqueza primária do homem. É bíblica. Voltaire, sabido por todos, talvez a maior das vozes que já se ergueu em favor da tolerância, em seu Dictionnaire Philosophique (1764), não deixa dúvida a respeiro dos intolerantes: "Evidentemente que qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro". Porém, a intolerância, a exemplo de uma chaga em estado de metástase, teima em brotar em lugares diferentes do corpo social. Mal parece curado um membro e lá está a ferida aberta em outro, buscando apodrecer e desmoronar o organismo todo pela insistência. Recente publicação dos alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, da USP, é não só mais um sinal da intolerância que teima em vencer pela exaustão, mas também um exemplo de como ela está disseminada entre os mais diferentes estratos sociais, insistindo em querer cansar os que lutam pelas liberdades de opinião e escolha e dos que apostam no caráter construtivo da diversidade, seja ela racial, religiosa ou sexual. E detalhe: estamos no século XXI.
Com o Iluminismo, no século XVIII, a Europa vê no advento da razão a possibilidade de luta pelo progresso através de um pensamento crítico. Com isso o conceito de tolerância passa a ser elemento central entre os filosófos iluministas, pois esta constitui-se num movimento do pensamento, da razão. Voltaire defende a ideia da necessidade de tolerância entre as pessoas, assim como Rousseau, se bem que os dois filósofos, ao longo de suas vidas, vão ter visões diferentes do que seria o mundo ideal. Mas quais fenômenos ilustrando a intolerância combate Voltaire? Num primeiro momento, o pensador vê no absolutismo a antítese da tolerância. Nessa lógica, somos todos iguais e não deve haver privilégios, regalias e vantagens particulares, o que, acredite, leitor, dado o país em que vivemos, cheira a utopia. Voltaire trava ainda verdadeira guerra contra o fanatismo, que considera a maior e mais cruel expressão de intolerância. O L'Affaire Calas, ilustra de forma exemplar essa sua luta contra o fanatismo, um verme sub-reptício que se aloja sob as máscaras da religião.
Em seu Dictionnaire Philosophique, Voltaire define a tolerância como "a primeira lei da natureza" e se opõe radicalmente ao fanatismo, seja ele político ou religioso. Lá, pergunta Voltaire: "O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza". Entretanto, Voltaire se opõe ao fanatismo religioso principalmente por causa da própria religião, pois, não importa qual seja o nome que a ela se atribuiu, essa definição é impossível de impedir que nesse mesmo credo apareçam pensamentos sectários e a criação de seitas. Os conflitos religiosos têm origem nessa impossibilidade. Se no Dictionnaire, Voltaire mostra o povo judeu como um exemplo de povo intolerante podendo, contudo, dar mostras de tolerância, ele critica também os cristãos: "De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens".
Do mesmo modo, ele pensa o fanatismo político. Esse seria problemático porque provoca desacordos entre defensores de diferentes pontos de vista sobre a organização de um sistema político. O fanatismo é, portanto, para o autor de Candide, seu principal alvo. Nesse conto, a mitrailleuse de Voltaire volta-se contra a Inquisição - expressão contundente de fanatismo, a qual critica particularmente, através das peripécias de sua personagem-título, envolta em situações que traduzem a necessidade de domínio sobre o outro e, portanto, a tensão nas relações humanas.
Para Voltaire, a tolerância é, portanto, o único remédio para os males humanos, condição necessária para uma vida harmoniosa. Assim, o homem deve perdoar os erros cometidos por seus companheiros e aceitar as diferenças, utilizando a sua razão, o que o distingue de todos os outros seres, porque « cette raison est douce, elle est humaine, elle inspire l’indulgence, elle étouffe la discorde » como diz o autor no capítulo V do Traité sur la tolérance (1763).
Embora, hoje, os valores religiosos estejam em baixa e os políticos sejam rasos à altura da visão própria dos répteis, o que, portanto, não comporta qualquer embate mais vivaz que faça brotar a intolerância, ela, persistente, apareceu entre os alunos homófobos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, que por razão torpe e deplorável, viraram assunto na mídia. Leiam sem esquecer-se de Voltaire: "... qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro".

23/04/2010 - 18h11
Jornal anônimo de alunos da USP "desafia" universitários a jogar fezes em homossexuais
Ana Okada
Em São Paulo
Atualizado às 21h42


Em uma publicação anônima destinada a estudantes da USP (Universidade de São Paulo), os leitores são "desafiados" a jogar fezes nos colegas homossexuais. O jornal, que se chama "O Parasita", circula por e-mail e não tem periodicidade definida.
Segundo os autores, que assinam com pseudônimos, a "campanha" teria sido criada porque a Faculdade de Ciências Farmacêuticas tem sido "palco de cenas totalmente inadmissíveis". Um trecho da nota: "Para retornar a ordem na nossa querida Farmácia, O Parasita lança um desafio, jogue merda em um viado, que você receberá, totalmente grátis, um convite de luxo para a Festa Brega 2010. Contamos com a colaboração de todos" (sic).

Imagens: Voltaire répétant Mahomet avec Lekain en costume de voyage; Voltaire (en rose) dinant à Sans-Souci avec Frédéric II (au centre); imagem publicada do site UOL Educação com página do Jornal "O Parasita".

Nota: Trechos citados de Voltaire: Livro: VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Cartas Inglesas; Tratado de Metafísica; Dicionário filosófico; O filósofo Ignorante/Voltaire; seleção de textos de Marilena de Souza Chauí; traduções de Marilena de Souza Chauí... (et al)., 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 290-293. (Coleção Os Pensadores).

2 comentários:

  1. A Universidade de São Paulo acolhe alunos do mundo inteiro, deveria ser um exemplo de tolerância. O texto dos estudantes de farmácia
    (espero e acredito que seja uma minoria)é odioso.
    A lembrança do artigo "tolérance" do "Dicionário filosófico" me parece muito pertinente. Não dá para entender que em pleno século XXI, ainda exista tal mentalidade.
    Reescrevo aqui o slogan que manisfestantes europeus exibiram em uma passeata contra a intolerância. São apenas duas palavras: "Socorro Voltaire!".

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  2. Século XXI, parece piada. Penso que esses sujeitos da Faculdade de Farmácia deveriam ser processados, pois estão ferindo a liberdade de escolha e não aceitando a diversidade. Será que eles têm certeza de suas escolhas? Acho que não.

    XIKO

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