Revista Philomatica

segunda-feira, 29 de março de 2010

A Língua de Voltaire

A marca francesa como um dos constitutivos que contribuíram para a formação da cultura brasileira ao longo do século XIX já se tornou afirmação banal. A compreensão de muito do que pensávamos – e pensamos, deve-se à cultura francesa, um misto de tradição e modernidade[1], para a qual nos voltamos em nossa tentativa de acesso ao grupo das nações ditas civilizadas. As contribuições foram muitas e em todos os campos: filosofia, medicina, geografia, literatura, tecnologia e, não menos, a moda, que fez da Rua do Ouvidor, no centro do Rio, o ponto de convergência da elite brasileira, tal a quantidade de lojas e produtos franceses ali disponíveis. Ali se falava francês, assim como na corte afrancesada acantonada nos trópicos, donde ter-se cunhado expressões tais como Paris Tropical, para se referir à capital federal e, Belle Époque Tropical[2], para tratar da virada do século XIX para o XX, em que a sociedade e a cultura na cidade do Rio de Janeiro, focavam - e copiavam - o que se produzia na capital francesa.

Em um texto de grande importância para os estudos brasileiros – O francês instrumento de desenvolvimento[3], Antônio Cândido traça o percurso do francês como língua que adquire caráter universal em fins do século XVIII e ao longo do século XIX, relativiza as línguas clássicas – o latim e o grego, na Europa, até chegar às nações sul-americanas numa época de transformação radical das visões de mundo, em que a era industrial toma forma e que, portanto, as línguas clássicas já não respondiam pela compreensão das novas fontes de cultura e desenvolvimento que se avizinhavam. O autor é enfático ao afirmar que foi “graças ao francês que pudemos ver o mundo, que adquirimos o senso da História, que lemos os clássicos de todos os países, inclusive gregos e romanos” [4].

Em se tratando de literatura lemos Goethe, Byron, Schiller, Hegel, Poe, etc., em versões francesas, incluindo-se aí, as eventuais lacunas francesas, pois, como afirma Cândido, “as traduções e interpretações eram algumas vezes deformantes e até empobrecedoras”, além do que, descobrimos o romance russo a partir de 1880, ainda que em versões francesas sofríveis, fato que os próprios franceses se encarregaram de rever por volta de 1930.

A França como pólo irradiador de cultura e modelo, ao qual nos voltamos em detrimento da cultura portuguesa, fez com que sua língua e cultura adquirissem certa “aura” de prestígio principalmente entre a elite brasileira. Evidente que diante de tal interesse os filhos dessa elite fossem desde muito cedo expostos ao aprendizado daquela que viria a ser conhecida como a língua de Voltaire. “A publicação de um livro didático, os Princípios Geraes ou verdadeiro methodo para se aprender a ler e pronunciar a Lingua Francesa, devia fazer falta na praça, pois é o primeiro do gênero que se publicou no Brasil.”, afirma Borba de Moraes[5]; Passos, em seu trabalho, A Miragem Gálica[6], destaca o fato de que a língua de Voltaire era pré-requisito obrigatório para os estudantes do Largo São Francisco ingressarem na Academia, isso em 1834. Não se pode esquecer, contudo, que também se exigia o inglês.

A universalidade da língua francesa e sua flexibilidade, já que também respondia aos anseios das classes inferiores, após o evento da Revolução, tornou-a elemento constitutivo de nosso desenvolvimento; no início do século XIX era ensino obrigatório na escola secundária brasileira. No Colégio D. Pedro II, fundado em 1837, “cujos currículos, enciclopédicos, apresentavam feição predominantemente literária” [7], o francês, desde os primeiros programas de ensino, consta como uma das principais disciplinas. Needell[8] comenta a importância da língua francesa no ensino das diferentes disciplinas ministradas no Colégio; ali os alunos manuseavam o Atlas de Delamarche, a Grammatica Franceza de Sévene, as Nouvelles narrations françaises de Filon, a História Romana de De Rosoir et Dumont, o Cours de Littérature française de Charles André, o Cours élémentaire de Philosophie de Barbe e o Manuel d’études pour la préparation du baccalauréat en lettres: Histoire de temps modernes, para citar alguns. Racine, Fénelon, Massilon, Montesquieu, Bossuet e tantos outros fariam parte dos estudos no Colégio.

A língua francesa a qual, em seu ápice na Europa, fora elevada à condição de elemento capaz de fomentar a unidade europeia, pois, segundo o excessivo Rivarol (1784) era a única que dava conta da ordem natural do pensamento, aqui ganha certa obrigatoriedade entre a elite e, depois, com a disseminação das ideias libertárias oriundas da Revolução, encontra amparo também entre as classes populares, consolidando uma galomania que se estenderá por todos os campos do conhecimento e será vista como necessária ao nosso desenvolvimento e à nossa emancipação literária. Passos, em seu estudo Panorama Cultural Franco Brasileiro[9], cita trecho de Elementos de Rhetorica Nacional, de 1869, de Junqueira Freire I (p.50-51): “Depois da gloriosa época da nossa emancipação política, têm surgido muitos gênios, mas ainda não temos completa a nossa emancipação literária. Enquanto não a tivermos, e formos obrigados a seguir um norte, sigamos a França. Porque é ela o farol que ilumina todo o mundo civilizado.”

O fato é que autores como Rousseau, Montesquieu e Voltaire adquirem foros de profetas do novo mundo[10], na esteira do que já ocorrera em Portugal, país que ostentava relativo atraso e prescindia das inovações técnicas, artísticas e científicas já em prática no ambiente europeu. Não por acaso Marmontel e Voltaire aparecem como mentores da Arcádia Lusitana.

As bibliotecas particulares e públicas eram repletas de obras em francês. A despeito das interdições da Real Mesa Censória. Rousseau, Montesquieu, La Mettrie, Diderot, Descartes, Marmontel, Bitaubé, Corneille, Racine, Bossuet, Molière, Voltaire - e tantos outros, foram presenças constantes em inúmeros inventários, fossem eles particulares ou de bibliotecas como as jesuíticas. Casos como o da biblioteca da Academia dos Guardas-Marinha, composta essencialmente por obras técnicas, indicam a língua francesa como importante instrumento na aquisição de conhecimento, pois, conforme afirma Nizza da Silva, “se tratava de uma biblioteca predominantemente francesa, quer pelos autores, quer pelos tradutores.” [11]

O hábito de ler romances que atingira Portugal no início do século XIX, chega ao Brasil junto da família real e dá novo fôlego à língua francesa. Além das leituras técnicas e de cunho político, esta, mais tarde acrescida da contribuição do ecletismo de Coussin e do positivismo de Comte, a marca francesa se solidificará no país com poetas do calibre de Musset, Lamartine e Victor Hugo.

Ao longo do século XIX a França mantém-se como pólo irradiador de ideias filosóficas e literárias que só farão integrar a literatura brasileira à francesa. É de lá a origem do pré-romantismo brasileiro, assim como é de lá que virão Musset, Vigny, Victor Hugo, Chateaubriand, Lamartine, Zola, Balzac, Dumas, Stendhal, Beaudelaire e tantos outros a saciarem o desejo do leitor brasileiro, ávido pelo que se produzia na língua de Voltaire.

Nota: Como citar este artigo:
MAGRI, D. Aspectos da presença de Voltaire nas crônicas machadianas, 368 f. Dissertação (Mestrado em Língua e Literatura Francesa) - Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 219-223.

[1] PASSOS, Gilberto P. O Napoleão de Botafogo – presença francesa em Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2000 (Coleção Parcours), p. 11.
[2] NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[3] SOUZA, Antônio Cândido de Mello et al. O francês como instrumento de desenvolvimento, in O francês instrumental, a experiência na Universidade de São Paulo. São Paulo: Hemus, 1977, p. 9-17.
[4] Idem, p. 12.
[5] MORAES, Rubens Borba de. Livros e Bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1979, p. 137.
[6] PASSOS, Gilberto P. Op. cit., p. 59. Veja página 9.
[7] PIETRARÓIA, Cristina Casadei. A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos dos primeiros períodos de ensino. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago, 2008, p. 8.
[8] NEEDELL, Jeffrey. Op. cit., p. 78.
[9] PASSOS, Gilberto P. A miragem gálica – Presença da França na Revista da Sociedade Filomática. São Paulo: Instituto de Cooperação Interinstitucional – Inter/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, 1991, p. 29.
[10] Idem, p. 19.
[11] SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 181.

Imagens: Rio Antigo: Avenida Rio Branco e Rua do Ouvidor; Gravura da Obra Candide, de Voltaire e pintura de Anicet Charles Gabriel Lemonnier, Lecture de la tragédie de Voltaire, l’Orphelin de la Chine, dans le salon de Madame Geoffrin en 1755, 1812, Château de la Malmaison.

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