Revista Philomatica

quarta-feira, 31 de março de 2010

Sobre gatos, poetas e escritores

O impertubável mistério, a independência e o silêncio incomodam a todos. Acredito que a independência seja o ponto crucial. Afinal, ao redor dos homens, se dão ao direito de ignorá-los completamente, a não ser que se interessem ou queiram algo - assim são os gatos. Os homens? Ah, estes os invejam, certamente! Outro dado a considerar é que são seres silenciosos, embora acredite que do alto de atitudes e poses majestosas, sejam capazes de invadir e vasculhar nossas almas e de lá, por meio de olhares imóveis e sábios, captar a essência do nosso ser. O contrário, penso ser humanamente impossível. O homem é incapaz de encará-los profundamente e tentar penetrar em suas almas. Eles sempre ganham. Da experiência, o que resta são palavras e afagos com os quais, voluntariamente, os presenteamos, além, é claro, da melancolia que sentimos ao comprovar que nunca vão nos pertencer por inteiro.
Muitos dizem ser o gato interesseiro, desconfiado, contraditório, ambíguo etc e etc. Talvez por isso tenham estreita relação com escritores. Afinal de contas, qual escrita não tem lá sua dose de ambiguidade e não oferece margem para a contestação das partes, réplica, tréplica, impugnação? Só depende do leitor porque, a essas horas - como diria Barthes, o autor já é morto. A escrita, como se sabe, não se faz em meio a grande alarde mas, sim, na solidão, no silêncio. Muitas vezes o único barulho provém das páginas em branco, amassadas, que o escritor não pôde vencê-las. Os gatos, privilegiados, deixam para trás os estudiosos da crítica genética e são os primeiros e únicos a participar do processo de criação, a presenciar as palavras se desenhando ao longo da linha que se enreda ao parágrafo seguinte perfazendo a trama e, sabe-se lá, um pelo ou um bigode perdido fará parte do tecido da escritura que se completa. Quem tem gatos, ama livros e escrever, sabe do que falo. Antes, se esfregavam nas máquinas de escrever; hoje, caminham sobre os teclados produzindo uma sucessão infinita de rrrrrrrrrrrrrrs, sssssssssssssss e outras letrinhas tantas. Talvez uma tentativa de dar corpo à fala que neles inexiste.
Os gatos, muitos afirmam, são razão de estudos para toda uma vida. Exagero! Isso é coisa de quem adora escarafunchar a vida dos outros. Me contento em vê-los adormecidos sobre meus livros, usando meu Petit Robert como travesseiro, embora, confesso, os inveje. Fernando Pessoa também os invejava: “És feliz porque és assim. Todo o nada que és é teu”.
Os gatos são amigos dos poetas. Esfregam os bigodes no verso e produzem a rima, pressionam desconfiadamente as unhas na página branca ou no teclado e surge a metáfora; olham insistentemente a tela e, clarividentes, fazem brotar do parágrafo todo o sentido que o poeta escondia sob a retina. O poeta usa de artifícios: rimas, métrica, palavras, vírgulas, pontos, metonímias, hipérboles, litotes e etc etc para aprisionar as palavras. O gato, num salto apaga o parágrafo, liberta as palavras, dissemina intenções e libera sentidos.
Muitos foram os escritores e poetas de todas as épocas que se renderam ao fascínio dos gatos e com eles compartilharam suas obras e suas vidas. Guimarães Rosa admitia que adorava conversar com seus dois gatos persas. Lygia Fagundes Telles escreveu A Disciplina do Amor, obra onde declara seu amor pelos gatos. O musical Cats, encenado na Broadway resultou de um poema de T. S. Eliot, O Nome dos Gatos. Outro célebre poema, Ode aos Gatos, é de autoria do não menos célebre Pablo Neruda. Seu poema é até hoje uma das mais brilhantes descrições da personalidade felina e, diga-se, evocada por todo defensor desses misteriosos e cativantes animais.
Há ainda uma infinidade de outros autores e poetas: Victor Hugo escrevia ternamente a seus gatos em um diário, Jorge Luiz Borges deixou-se fotografar inúmeras vezes com sua gata branca, que adorava dormir de barriga para cima. Edgar Allan Poe fez do gato o tema para alguns de seus melhores contos e Baudelaire, em Les Fleurs du Mal, dedica três poemas aos felinos.
Transcrevo agora, trecho de artigo publicado na Revista Eletrônica Século XXX, sobre os felinos: "Para Ernest Hemingway os gatos eram as únicas criaturas que mereciam ser mimadas incondicionalmente – tinha tanta paixão por eles, que chegou a ter 50 gatos, os quais deixou protegidos em testamento, ao morrer, em julho de 1961. O escritor determinou que seus gatos deveriam ser mantidos com todo o conforto por meio dos rendimentos oriundos de direitos autorais de sua obra. E assim foi feito. A casa em que morava em Key West, na Flórida, foi transformada em The Ernest Hemingway Home & Museum e tem como principal atração 57 bem cuidados gatos – todos descendentes dos primeiros bichanos do escritor.
Como esses, muitos outros escritores, poetas e pensadores de todos os gêneros renderam-se ao fascínio dos felinos e com eles compartilharam suas obras e suas vidas. A lista é notavelmente longa: Lord Byron, Anton Tchekov, Collette, Alexander Puskin, Céline, Paul Gallico, Hermann Hesse, H.H. Munro, Thomas Hardy, Edward Lear, Lewis Carroll, Beatrix Potter, W.B. Yeats, Théophile Gautier, Ray Bradbury, Colette, Honoré de Balzac, Raymond Chandler, Jean Cocteau, Marcel Mauss, Júlio Cortazar, Alberto Moravia, Rudyard Kipling e Charles Perrault (criador do Gato de Botas) adotaram gatos como seus companheiros de silêncio e de escrita e adoravam ou adoram falar deles, escrever sobre eles, transformá-los em personagens de suas histórias.
Também é o gato, com seus mistérios e sua ligação com o encantamento, o animal favorito de muitos autores de ficção científica e terror, como H.G.Wells, Stephen King e Patricia Highsmith. A lista continua com Mark Twain que, da infância compartilhada com 19 gatos, até a velhice, nunca deixou de viver na companhia de pelo menos dois gatos. "Não se imagina uma casa de Mark Twain onde os gatos não reinem supremos", diz um de seus biógrafos. Em sua fazenda em Connecticut viviam 11 gatos. Entre os intelectuais brasileiros os “gateiros” também são muitos: Clarice Lispector, Ana Miranda, Jorge Amado, Ruy Castro, Mario Quintana, Mauro Rasi, só para citar alguns.
Mas o que pode haver de tão intrínseco entre essas duas espécies – gatos e escritores – que as une tanto? “Eles foram feitos para se entender”, afirma a psiquiatra Nise da Silveira no livro Gato, a emoção de lidar. Conhecida por ter transformado seus muitos gatos em co-terapeutas no tratamento de doentes mentais, a doutora Nise nunca teve dúvida de que os gatos são os companheiros ideais para o ser humano. “O gato é remédio para a solidão – a doença mais devastadora de nossos dias”, afirmava. Mas seriam os escritores seres solitários? Talvez solitário seja o ato de escrever e, para isso, não há companhia melhor do que a silenciosa, delicada e elegante presença felina. Talvez seja mais correto pensar que escritores têm a alma livre, capaz de se deixar levar pelo sonho e viver outras vidas por meio de seus personagens. Seria a liberdade – característica essencialmente felina – um desafio para a imaginação de escritores?
Ou será que são os gatos que procuram os escritores? Há gatos que adoram livros e vivem em bibliotecas, como o gato Dewey, um filhote de pelo dourado abandonado que foi adotado por uma bibliotecária da cidade de Spencer, nos Estados Unidos e se transformou em mascote de toda a população. Ele tinha o hábito de escolher o colo de um visitante da biblioteca para dormir todas as tardes. Com um apurado sexto sentido – que todo apaixonado por gato sabe ser natural nos felinos – Dewey escolhia sempre a pessoa mais carente para mimar com seus afagos. Sua história correu os Estados Unidos e se transformou no livro Dewey – Um gato entre livros, escrito em parceria por Vicki Myron (a bibliotecária) e o escritor Bret Witter. Será que os gatos, de maneira geral, não se compadecem ao ver aquela criatura diante do teclado, em companhia apenas de seus pensamentos e letras e, intuitivamente, decidem lhe dar carinho e atenção? Será que os gatos, que odeiam a subserviência, não perceberiam nos escritores um espírito mais aberto, despojado da pretensão humana de se dominar a tudo e a todos? Ou será que os gatos simplesmente apreciam essa companhia pensativa e silenciosa, o som do teclado, o cheiro dos livros? Quem sabe? O fato é que muitas considerações filosóficas já foram tecidas sobre a atração mútua entre gatos e escritores, mas não há conclusões a respeito. Talvez este seja apenas mais um mistério felino entre tantos que vêm desafiando a imaginação humana desde o princípio dos tempos".
E fim de prosa: corra, adote um gato e escreva algumas páginas!
Imagens: Frederick, the literate, by Charles Wysock; Cabral - o gato, em dia de muita paz e O Gato Preto (aquele que não é o da Alice, portanto, não ri, apenas observa).

3 comentários:

  1. Gatos, gostei muito da abordagem, acredito que eles tem a sua forma de fala. Inclusive, eles se fazem entender quando querem.
    Eles são nossos prisioneiros e nós somos seus eternos escravos.

    XIKO

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  2. Concordo com tudo. Essa independência chega a me irritar, às vezes...rs
    Adoro felinos de paixão, tenho um casal de irmãos. A gata é preta,igual a da foto.
    O gato é igual ao filhote ( 1ª foto ), parece um tigre. Adorei.

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  3. Já tive muitos gatos e sempre achei q eles têm a mesma personalidade q a minha: analisam a pessoa antes de lhes confiar sua vida e seus segredos. E uma vez traído... nunca mais esquece...

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