Revista Philomatica

terça-feira, 23 de março de 2010

O inseto voador

"Certa manhã, ao despertar de um um sonho inquieto, Gregor Samsa descobriu-se em sua cama transformado em um insuportável inseto. Deitado de costas, duras como um casco, ele viu, ao erguer um pouco a cabeça, sua barriga arredondada, pardacenta, repartida por pregas arqueadas, do alto da qual a coberta, já quase toda caída, escorregava. Diante de seus olhos moviam-se desesperadas suas várias pernas, ridiculamente finas em comparação com suas proporções de antes". Isso foi há quinze dias, ou melhor, para Gregor Samsa, foi depois de um longa noite de sono, para mim, há quinze dias que, sem querer, lembrei-me de A Metamorfose, de Franz Kafka. Não sei se exatamente por causa do inseto, que muitos dizem ser uma barata, dada a descrição do autor, mas acho que em razão da conjunção com a chuva. Explico-me: ao ir até a cozinha, ouvi a chuva que caía batendo nos vidros da janela, que ficam rente à pia, onde está o filtro d'água. Por razões que só a sinapse explica, lembrei-me do trecho em que o caixeiro viajante, amanhecido e preso no corpo de um inseto contempla a chuva: "O olhar de Gregor voltou-se então para a janela, e o tempo fechado - ouviam-se gotas de chuva batendo no peitoril de metal - deixou-o bastante melancólico". Antes que você, leitor, se perca por entre essas linhas, adianto: continuo firme sobre duas pernas, ereto qual homo sapiens moderno. A conjunção a que me referi anteriormente, completou-se com a presença de uma barata em minha cozinha. Vi-a entrar voando na noite quente e chuvosa, talvez à procura de abrigo. Embora chovesse, confesso, melancolia não senti; de fato, fui tomado pelo asco. Começou a perseguição: de chinela em punho, optei por agir lentamente, à espreita, certo de que teria à frente uma presa fácil. Engano o meu, o pequeno inseto deve ter lá seus censores. A menor aproximação e disparava pelos cantos procurando tornar-se invisível, embora os azulejos sejam brancos e ela, a barata, marron avermelhada, ou pardacenta, tal qual Gregor. Resistente em seu intuito de fazer-se imperceptível, fez-se perversa. Aproximou-se de meu filtro São João - aqueles que têm um pequeno pedestral, oco, à maneira daqueles santos usados como cofre-forte em tempos idos, nas pequenas cidades do interior. Afastei o filtro, segurei a chinela mais forte e, num só golpe, acreditei tê-la esmagado. Que nada! Seus censores pressentiram o golpe mortal, o que a fez entrar pelo oco do filtro, através da fenda que a superfície da pia proporciona.
Sonolento, desisti do inseto, tranquilo por tê-lo deixado preso. Ao encaminhar para a cama, pensei que ao menos não experimentara da sensação que tomou Brás Cubas ao lançar a toalha e desferir o golpe mortal na borboleta preta como a noite que lhe pousara na testa. Anteontem é que fui descobrir a resistência da barata. Ao mover o filtro, ela disparou em velocidade inacreditável, como se em todos esses dias de cárcere estivesse acumulando energia para a fuga final. Precavido, dei o golpe certeiro e confesso, não me aborreci feito o defunto autor, nem sequer entrei em estado de reflexão procurando razões que me desculpassem por tão certeiro golpe. Nem é preciso dizer: sonhei com barata.
No dia seguinte decidi saber mais sobre o inseto, afinal, pensei, por que razão teria Kafka escolhido inseto semelhante - se é que era realmente uma barata? Eis o que descobri:
1) Há um site que tem o nome do inseto - A Barata. As razões para isso? Bem, seu autor também menciona Kafka e afirma ser A Metamorfose uma parábola social e que, de fato, as pessoas pouco se importam com o estado do caixeiro viajante, mas sim com o impacto que seu estado causará àqueles que o rodeiam; outra razão: baratas gostam de papel, igual a escritores, donos de sebo etc (e eu que sempre adorei os gatos porque resfestelam-se sobre os livros); diz ainda nosso amigo: a barata é um ser underground, que todo poeta com ela se identifica (será?; queria poder perguntar isso ao Drummond, ao Beaudelaire -rsrsrs); e mais: barata em inglês é roach, gíria também para "bagana" - toco de cigarro de maconha - Ah! aí entendi tudo! (rsrsrs).
2) As baratas sobreviveram aos dinossauros, ou seja, foram concidadãos;
3) Conseguem sobreviver - algumas espécies, por até dois meses sem comida e, sem cabeça, por nove dias;
4) Em situações extremas, se reproduzem sem o macho;
5) Algumas chegam atingir até 10 cm;
6) Gastam 75% de seu tempo descansando (Eh, vida boa!);
7) Aqueles negocinhos do tamanho de um feijão, na verdade é um ovo e se chama ooteca;
8) Alguns machos, durante o acasalamento, estridulam emitindo sons que chegam a 60dB;
9) Nos Estados Unidos, gastam-se US$ 1,5 bilhões por ano para tentar exterminar o inseto;
10) Na alimentação humana, para muitos povos orientais as baratas fazem parte de sua dieta, sendo comidas cruas ou cozidas. No Brasil, os índios Chocleng, de Santa Catarina, apreciavam as baratas. (Eca, eca, eca, mil vezes eca!!!)
Embora repugnantes - claro, acabei por respeitá-las, porém, elas lá, em qualquer lugar, longe, bem longe da minha cozinha. E fim da prosa: reli bom trecho de A Metamorfose, de 1915, publicado originalmente na revista expressionista Weifbe Blätter, que abrigava textos da nova geração de escritores alemães como Heinrich Mann, Ernest Bloch e Rosa de Luxemburgo. A novela narra a singular história de Gregor Samsa, um caixeiro viajante que certo dia acorda transformado em inseto. Plena de significados simbólicos, a obra deu origems às mais diversas interpretações. Wladimir Nabokov, professor e escritor russo, afirma que a obra não é redutível a drama familiares do autor mas, sim, traz a expressão da tensão do artista em meio à sociedade burguesa de sua época.

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