Revista Philomatica

sexta-feira, 17 de março de 2017

Amizades literárias: Montaigne e La Boétie

A semana encerrou um período em que se catapultou o eufemismo. Refiro-me à campanha política. Quotidianamente, eleitores tiveram seus ouvidos e inteligência postos à prova, de modo a fazer crer no aforismo de que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Nela, produziu-se de tudo, exceto alguma cortesia ao sinônimo, uma vez que teriam que adentrar o léxico da malandragem.
Mas isso é assunto próprio das “semanas ricas”, quando as notícias chegam de carruagem. A arraia-miúda, esta, tem lá seus encantos; obriga-nos a apertar os olhos, tal o míope, à procura da ranhura imperceptível ofuscada pelo brilho fácil das almas exteriores.
E foi assim que caí no rodapé da página: o assunto não era outro que a amizade. Incensada como uma das grandes virtudes humanas, liame que une sonhos, ideias, juízos e vidas, hoje, ganhou ares e tons sofísticos. Não por outra razão ser e ter amigos já entrou para o domínio das ciências exatas. Disputam-se quantidade de likes e seguidores em páginas discutíveis, quiçá, ofensivas, tal a qualidade do conteúdo e das amizades.
Chamou-me a atenção a história de Mahlon, garotinho americano de 9 anos, cuja festa de aniversário foi ignorada pelos amigos. Popular na escola, disse à mãe que aquele seria o dia mais feliz de sua vida. No entanto, amargou a indiferença absoluta. A experiência de Mahlon viralizou por meio de um relato da mãe. Tocados, milhares de internautas amigos enviaram-lhe cartões, na tentativa de minimizar a decepção do pobre garoto, alimentando assim as estatísticas. Isso me fez pensar na qualidade dos amigos. Concluí que bem aventurados são aqueles em que o número total deles não excede os dos quirodáctilos.
Como, felizmente, nem só de facebook vive o homem, mas de toda a sabedoria que provém dos livros, de pronto, o assunto levou-me à célebre amizade de Montaigne e La Boétie. Você, leitor, pode questionar o salto tão abrupto que me levou de Mahlon a Montaigne. Não creio que tenha razão, afinal, são as sinapses, e contra elas não há argumentos. Em minha defesa tenho as memórias literárias e os efeitos de leitura, que likes ignoram.
A literatura é farta em amizade icônicas. Quem não se lembra da singular página de Exupéry, que celebra o encontro marcado entre a raposa e o Pequeno Príncipe? Dr. Watson e Sherlock Holmes? Dom Quixote e Sancho Pança? Sexta-feira e Robinson Crusoé? Amizades literárias, ficção, mas possíveis de lançar certo enleio e encanto à alma humana. Mas, voltemos a Montaigne:
Um dos grandes acontecimentos da vida de Montaigne foi, sem dúvida, seu encontro com La Boétie: tem-se então o início de uma amizade que só terminaria com a morte de La Boétie. De fato, uma perda da qual Montaigne jamais se recuperou. A agonia do amigo é relatada pelo filósofo em uma longa e emocionada carta a seu pai e, mais tarde, o primeiro livro dos Essais seria concebido como um tributo ao amigo morto.
Montaigne, na tradição de Aristóteles, Cícero e Plutarco, traça verdadeiro elogio à amizade:
“Aquilo a que normalmente chamamos amigos e amizades não passam de conhecimentos e relações familiares em que se verifica uma ligação por um tipo qualquer de conveniência, que permite que as nossas almas se suportem uma à outra. Na amizade de que estou a falar as almas estão misturadas e confundidas numa ligação tão universal que apagam a união que as junta, não sendo possível encontrá-la. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o amava, sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque era eu. (MONTAIGNE, Essais, Livro I, Cap. XVIII)”
Por fim, para encerrar a prosa, trago um dito de La Rochefoucauld, compatriota do filósofo: “A amizade, depois da sabedoria, é a mais bela dádiva feita aos homens”.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/


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