A
semana encerrou um período em que se catapultou o eufemismo. Refiro-me à
campanha política. Quotidianamente, eleitores tiveram seus ouvidos e
inteligência postos à prova, de modo a fazer crer no aforismo de que uma
mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Nela, produziu-se de tudo, exceto alguma
cortesia ao sinônimo, uma vez que teriam que adentrar o léxico da malandragem.
Mas
isso é assunto próprio das “semanas ricas”, quando as notícias chegam de
carruagem. A arraia-miúda, esta, tem lá seus encantos; obriga-nos a apertar os
olhos, tal o míope, à procura da ranhura imperceptível ofuscada pelo brilho
fácil das almas exteriores.
E
foi assim que caí no rodapé da página: o assunto não era outro que a amizade. Incensada
como uma das grandes virtudes humanas, liame que une sonhos, ideias, juízos e
vidas, hoje, ganhou ares e tons sofísticos. Não por outra razão ser e ter
amigos já entrou para o domínio das ciências exatas. Disputam-se quantidade de likes e seguidores em páginas
discutíveis, quiçá, ofensivas, tal a qualidade do conteúdo e das amizades.
Chamou-me
a atenção a história de Mahlon, garotinho americano de 9 anos, cuja festa de
aniversário foi ignorada pelos amigos. Popular na escola, disse à mãe que
aquele seria o dia mais feliz de sua vida. No entanto, amargou a indiferença
absoluta. A experiência de Mahlon viralizou por meio de um relato da mãe.
Tocados, milhares de internautas amigos enviaram-lhe cartões, na tentativa de
minimizar a decepção do pobre garoto, alimentando assim as estatísticas. Isso
me fez pensar na qualidade dos amigos. Concluí que bem aventurados são aqueles em
que o número total deles não excede os dos quirodáctilos.
Como,
felizmente, nem só de facebook vive o
homem, mas de toda a sabedoria que provém dos livros, de pronto, o assunto
levou-me à célebre amizade de Montaigne e La Boétie. Você, leitor, pode questionar
o salto tão abrupto que me levou de Mahlon a Montaigne. Não creio que tenha
razão, afinal, são as sinapses, e contra elas não há argumentos. Em minha
defesa tenho as memórias literárias e os efeitos de leitura, que likes ignoram.
A
literatura é farta em amizade icônicas. Quem não se lembra da singular página de
Exupéry, que celebra o encontro marcado entre a raposa e o Pequeno Príncipe?
Dr. Watson e Sherlock Holmes? Dom Quixote e Sancho Pança? Sexta-feira e
Robinson Crusoé? Amizades literárias, ficção, mas possíveis de lançar certo
enleio e encanto à alma humana. Mas, voltemos a Montaigne:
Um
dos grandes acontecimentos da vida de Montaigne foi, sem dúvida, seu encontro
com La Boétie: tem-se então o início de uma amizade que só terminaria com a
morte de La Boétie. De fato, uma perda da qual Montaigne jamais se recuperou. A
agonia do amigo é relatada pelo filósofo em uma longa e emocionada carta a seu
pai e, mais tarde, o primeiro livro dos Essais
seria concebido como um tributo ao amigo morto.
Montaigne,
na tradição de Aristóteles, Cícero e Plutarco, traça verdadeiro elogio à
amizade:
“Aquilo a que normalmente chamamos amigos e amizades não
passam de conhecimentos e relações familiares em que se verifica uma ligação
por um tipo qualquer de conveniência, que permite que as nossas almas se
suportem uma à outra. Na amizade de que estou a falar as almas estão misturadas
e confundidas numa ligação tão universal que apagam a união que as junta, não
sendo possível encontrá-la. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o
amava, sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque
era eu. (MONTAIGNE, Essais, Livro I,
Cap. XVIII)”
Por
fim, para encerrar a prosa, trago um dito de La Rochefoucauld, compatriota do
filósofo: “A
amizade, depois da sabedoria, é a mais bela dádiva feita aos homens”.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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