Revista Philomatica

terça-feira, 28 de março de 2017

O Little Boy carioca: tragicomédia e catarse

Há um pequeno grande livro que constitui a base dos estudos de teoria literária: a Poética, de Aristóteles. E está lá na Poética: “A comédia é uma imitação de caracteres inferiores, não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora [...]”.
Por que exumar um filósofo do século IV a.C. nesse espaço dedicado ao frívolo? Ora, simplesmente porque se recebe a influência do tempo e não se lhe impõe. E a pantomima do Little Boy carioca, desde que veio à tona, ora teve ares de dramalhão mexicano, ora de comédia barata - como dizemos aqui nos rincões - sem, evidentemente, qualquer menção ao orçamento, mas à qualidade do mythos (enredo) - demasiadamente simples - e à performance do protagonista.
E já que navegamos por mares helênicos, por que não falar da catarse, acompanhada de um sorriso desbragado, que inundou a alma dos brasileiros ao longo da semana? Ainda não ligou os pontos, caro leitor? Pois vá lá uma ajudazinha: quem dentre vós, ó mortais, não vistes nos telejornais Little Boy aos gritos esperneando dentro de uma ambulância, acompanhado pelas carpideiras da família? Aquilo confundiu os gêneros (falo dos literários: comédia, tragicomédia, dramalhão made in Mexico...) e os sentidos. Foi tudo tão sinestésico!
Tudo isso porque nosso herói confundiu as bandeiras públicas e particulares. Little Boy recebeu a polícia logo no café da manhã por haver praticado o escambo. Coisas de garotinho, brincadeira inocente de criança que, não se sabe bem o porquê, lhe rendia uns trocados e algum poder.
Rosinha, Ms. Little Boy - creio eu - contabilizava o vil metal, mas jura retidão, afirma que seu deus não faz obras pela metade e credita tudo o que possui às bênçãos do altíssimo. E mais: em consonância à regra geral das raposas pegas em assalto aos galinheiros, alegou não saber de nada. Nunca soube, nem ela nem Little Boy; mas o fato é que ele, espertinho, comprou votos fazendo uso dos tais chequinhos e deu no que deu.
À mesa, saudável, Little Boy sorvia o café e apreciava as ondas que se desdobravam na orla carioca. Chegados os pretorianos, o pequeno cai doente.
Enquanto a pègre aguarda dias para adentrar nos hospitais públicos, Little Boy furou fila e teve direito a um quarto só para ele, privilégio que raros convênios médicos oferecem. Não houve regalias, afirma o hospital. O populacho depositado nos corredores hospitalares, parece-me, tem opinião diversa.
O juiz, ao saber do ocorrido, manda lá um democrático “publique-se e cumpra-se”. Os pretorianos, mais uma vez, são encarregados da transferência de Little Boy do hospital para o presídio. Little Boy, já em estado terminal, desperta repentinamente: grita, esperneia, solta uma ou outra obscenidade e dá muito trabalho ao pessoal da farda.
A vileza de Little Boy não foi a doença fingida, mas sua má interpretação (ainda que a vileza aqui difira daquelas tratadas da Retórica II). Tornou-se ridículo; inferior já o era, sabíamos todos, mas sem espetáculo. Uma vez levado do quarto à ambulância Little Boy aprofundou-se na exibição de seu caráter inferior conferindo clímax à comédia.
Como coadjuvantes, meia dúzia de asseclas e as carpideiras da família. Estas não pranteavam mortos, mas um ente querido à beira da sepultura que, inacreditavelmente, opôs-se a cinco policiais, tamanha era a força das braçadas e esperneios. A carpideira-mor, aos gritos de “meu marido não é bandido”, clamava por justiça e pedia para ser levada junto.
Para encerrar a prosa, penso que o pastelão do Little Boy, de vileza tal, só fez ridicularizar sua já conhecida deformação de caráter. Nós, o povo, diante de uma ação de natureza nada elevada, tivemos nosso momento de catarse às avessas e rimos muito! E não condenem nosso riso, escolásticos, pois muitos choraram nos hospitais em razão de uns e outros chequinhos desviados do erário por desprezíveis little boys. 

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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