Em
muitas civilizações o aprendizado da leitura constituía-se algo iniciático. Hoje,
reformadores morais citam o exemplo de crianças que imitam a cicatriz de Harry
Potter ou usam chapéu de bruxo para reproduzir o ritual de iniciação descrito
no livro.
É
certo que nos idos em que a introdução à leitura figurava-se ritualística,
também isso não era lá uma prática unânime. Demônios e ocultismo sempre vieram
à cena para dissimular algo que parte da sociedade, pretendendo-se eleita, sempre
tentou restringir: a difusão da cultura e do conhecimento, magia que sempre se
mostrou bem mais temerária e eficaz que as ditas poções.
Ao
longo dos séculos, livros e autores foram queimados à revelia. Ainda podemos
sentir o calor das chamas da grande fogueira da Praça Bebel, ouvir o crepitar
das páginas e, em espírito, contemplar o tremeluzir das chamas. Nos dias
atuais, mais urbanos, guilhotinam-se verbas destinadas à educação, às universidades,
aos museus e afins. Hipócritas, hoje somos afeitos a bordões: ora é pátria
educadora, ora é ordem e progresso...
Mas
voltemos aos ritos iniciáticos. Conta-se, por exemplo, que na Idade Média,
sempre que uma criança ia ser iniciada na leitura, submetiam-na a dois
processos: obrigavam-na a lamber uma ardósia besuntada de mel, ou a comer ovos
e bolos, sobre os quais versos haviam sido previamente escritos. Ao comê-los,
acreditava-se que a criança incorporaria a escrita neles reproduzida.
Tornar-se
um leitor é passar por um ritual de iniciação, é atravessar um limiar entre a
infância e a idade adulta, entre a ignorância e a sabedoria – e por que não, a
loucura? -, entre si e o outro que nos tornamos quando lemos. Sim, porque o
livro não só é um objeto peculiar que pode ser incorporado, devorado, mas
também um espaço que pode ser sobrevoado e no qual pode-se mesmo mergulhar. E
sempre que nele mergulhamos, instauramos uma temporalidade singular. Explico-me: separamo-nos do curso ordinário do tempo, do
cronológico; o leitor passa a viver um tempo separado, dilatado. Não bastasse o
ficcional da narrativa, ele é deslocado para uma duração relativa – e diversa –
das coisas, onde a ideia de passado, presente e futuro é totalmente perturbada.
Não
falo obviamente da leitura orientada para uma prática (receita de cozinha, por
exemplo) ou informação (saber as últimas da politicalha), mas daquela leitura cuja
essência é a mesma da conversão, ou seja, trata-se de uma experiência intensa,
rica, durante a qual o leitor se vê modificado e não somente informado. Não por
outra razão muitos falam em arte de ler.
Há
uma infinidade de estudiosos que se debruçaram sobre essa arte no intuito de
entendê-la mais a fundo. A maioria coloca você, leitor, como protagonista.
Dentre
eles, destaco Antoine Compagnon com seu O
Demônio da teoria. Em um capítulo dedicado ao leitor, Compagnon ressalta as
posições antitéticas dedicadas ao leitor pelos estudos literários. Em certo trecho,
aborda a ideia de a leitura se constituir por via dupla: trata-se de um ir e
vir em que ora prevalece o repertório do leitor (Iser), ora seus valores e
experiências são modificados e alterados exatamente em razão da leitura. Além,
é claro, do fato de que, ao realizá-la, o leitor faz com que o texto literário
perca sua incompletude (Ingarden).
Numa
compreensão livre do texto do Compagnon, sem pretensão a qualquer aprofundamento
crítico, chamo a atenção para o fato de essas ideias estarem ligadas à memória
literária, à circulação das ideias enquanto mecanismos intertextuais.
Por
mais que os estruturalistas tenham insistido no funcionamento neutro do texto e
os formalistas clamado por sua imanência, ambos, afastando o intruso leitor
empírico, não ressaltam o fato de que esse texto deixa lacunas, falhas e
espaços que, sob a rigidez criteriosa de um leitor experimentado, são
preenchidas. Ao preenchê-las, é sabido que a leitura caminha para frente,
porém, carregada de indícios deixados ao longo do caminho por diferentes
leitores, os quais, na condição de scriptors,
fazem jus à capacidade de combinarem textos pré-existentes.
Não
por outra razão Roland Barthes (1970: 15) afirma: “O ‘eu’ que se aproxima do
texto já é em si uma pluralidade de outros textos, de códigos intermináveis, ou
mais exatamente: perdidos (cuja origem se perdeu).”[1]
Mas
deixemos Barthes de lado e o clichê da morte do autor que se pode entrever a
partir de suas palavras. A discussão proposta por Compagnon restringe-se ao
leitor, contudo, este - como vimos - inelutavelmente chega ao texto contaminado.
E,
só para ver o quanto você leitor é importante, caso você venha a se deparar com
um Borges pela frente, verá que terá que enfrentar uma peleja que não só dá
conta da referencialidade (as ligações da literatura com o real: a filosofia, a
história, etc.), mas, sobretudo, da referência (o modo como a literatura retoma
a si mesma e se reconta através das obras).
Diante
disso, ignorá-lo, leitor, relativizá-lo face à imanência textual, parece-me, seria
ignorar a memória literária. Mas isso é prosa para outra hora!
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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