Revista Philomatica

terça-feira, 21 de março de 2017

Mariana e as narrativas perdidas

Era uma vez, um país muito distante, habitado por um povo singelo e crédulo, excessivamente crédulo. Conta-se que ali, só de conventos e mosteiros, havia para cima de quatrocentos, prova física de que acreditavam piamente em Nosso Senhor.
No reino de sua majestade, o Rei José I, todos, nobreza e súditos viviam no melhor dos mundos possíveis. A vida passava lentamente. O Rei e o Marquês de Pigeon, grandes reformadores, sequer desconfiavam que hora ou outra o povo chafurdava na lama. Na estação das grandes chuvas, tornava-se difícil distinguir porcos de servos. Mas isso era culpa da natureza. Nem mesmo o Rei e o Marquês sabiam da lama sazonal, visto que o sol encarregava-se de providências eficazes. M. Pigeon, afeito às ideias esclarecidas, preocupava-se com as reformas no reino, porém, estas, jamais beneficiavam o populacho, cujos dentes ausentes denunciavam o determinismo da vida.
Na manhã de primeiro de novembro, quarta-feira, do Anno Domini Nostri Iesu Christi de 1775, em orações matinais, não só monges e freiras celebravam o dia de Todos os Santos, mas todo o povo crente também lotava as igrejas. Porém, às 9h40 daquele dia, um tremor surdo e destrutivo anunciou o fim de quase tudo. Segundos após o estrondo, tudo se transformou.
O trovão subterrâneo pôs abaixo as igrejas; ímpios e hereges, avessos à religião, puseram-se a correr em todas as direções. Possuídos pelo horror e o assombro, batiam nos próprios rostos e corpos, gritando por misericórdia. Em delírio correram para as igrejas em busca da proteção do crucifixo, pois pensavam tratar-se do fim do mundo. Lá chegando, elas não mais existiam; o que viram foi um amontoado de pedras, corpos, sangue, sacerdotes, gemidos e imagens em ruínas.
Felizmente, o Rei e seu ministro, o Marquês de Pigeon, sobreviveram em seus castelos de pedras grandes e espessas. Rei e ministro prometeram reconstruir tudo, afinal, a colônia distante sobejava em riquezas.
O povo desesperou-se. Assustados, muitos decidiram partir de vez para a longínqua colônia. Atravessaram o oceano e ficaram pé na terra que um dia fora chamada de Paraíso.
Passou-se um tempo e um desses fiéis fixou-se em um pequeno vilarejo, por nome Bento Rodrigues. Ali, assim como os compatriotas que haviam construído a igreja de São Bento, tentou reproduzir as origens. Da terra extraíam diamantes e ouro, que eram enviados para a capital do reino.
Bento, que deixava o trabalho às 17h30, ao ver que o relógio marcava 15h30, pensou: “Mas ainda é cedo!” Não entendia o porquê do tumulto em volta de uma das camionetes da Grande Companhia, coligada sub-repticiamente a políticos do governo central e nova exploradora daquelas terras nas Minas Gerais. 
Aproximou-se e logo pode ouvir a voz trêmula que vinha do rádio da camionete: a grande barragem se rompera, a lama descia pelo vale. Perplexos, olharam um para os outros. Por um momento ficaram paralisados. Bento, num átimo, despertou-se e lembrou-se do baú. “Não sei vocês, mas vou para o vilarejo”, disse isso e montou em sua moto. Podia ver o baú silencioso no canto do quarto de paredes caiadas e já desbotadas pelo tempo, apesar das muitas vozes ali contidas. 
Enquanto dirigia desenfreadamente, podia ouvir os gritos daqueles que corriam pedindo que voltasse, pois não teria tempo de chegar ao vilarejo. Lembrou-se dos relatos de seus antepassados preservados nos cadernos já seculares. Pensara em transformar tudo aquilo em livro, tornar público a saga da família que sobrevivera ao Grande Terremoto, contar sua miséria nos arrabaldes de Santa Rita Durão. Não teve tempo. O excesso de trabalho e o pouco estudo limitaram seus planos. A esperança era o filho. Este sim, com ares de poeta e historiador, haveria de transcrever aquelas garatujas e contar o périplo dos primeiros deles a pisar no Novo Mundo.
Fez ouvidos moucos aos alertas e prosseguiu. Ao chegar perto de uma das pontes, notou a enxurrada próxima dali. Deu meia volta para tentar acesso pela outra. No caminho, enterrou a mão na buzina e aos gritos avisava a todos que a barragem havia rompido: foge! foge!, mas ele mesmo tomava sentido contrário. Era preciso salvar o baú.
Encontrou alguns moradores que, paralisados, olhavam para as montanhas e vislumbravam a onda de poeira e lama que se deslocava apressada em direção à vila. O barulho era de uma catarata. Bento pensou nas águas límpidas do Rio Doce, onde ele e o filho passavam horas a contemplar o redemoinho claro das águas translúcidas.
Ao chegar a outra ponte, viu-a tomada pela lama. Pouco antes cruzara com um grupo de pessoas que buscava abrigo em um morro alto. Pensou que se tivesse alguma chance, talvez devesse agarrar-se a ela. Enveredou-se então para o cume do morro. De lá ouvia o barulho forte e destruidor da enxurrada. Lembrou-se das narrativas, do trovão subterrâneo, das pessoas em desespero, do baú e do cachorro que o esperava; as lágrimas vieram-lhe aos olhos.
Passado um ano, Bento ainda escava o local onde um dia morou à procura das vozes, relatos, angústias, medos, aventuras e alegrias aprisionados nos cadernos. Às vezes ouve vozes de vizinhos que se foram misturadas às vozes do baú e aos latidos do amigo desaparecido. Culpa a si mesmo mais que a enxurrada. Deveria ter libertado as narrativas, mas não, fora egoísta! A idade e a memória já não lhe permitem mais reproduzi-las.
O vilarejo já não existe. A lama engolfou casas e vidas. O sol, providente, só fez solidificar a lama que a chuva aos poucos dissolve em tortura contínua.
Bento lembra-se de fragmentos das narrativas. Em uma delas, contava-se que o Rei José I, assustado, passara o resto da vida em um complexo luxuoso de tendas. Sofrera fobia das pedras. Aqui, nas Minas Gerais, os palácios são distantes do vilarejo, inalcançáveis à lama, reflete. Triste, recorda-se do voo panorâmico que a Rainha Maldi, adepta da filosofia otimista, fez pela região, das promessas da Grande Companhia, do silêncio dos políticos ambientalistas e do baú de vozes e narrativas, arremedo de tesouro, soterrado pela lama.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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P.S. Dia 5/11/2016 completou-se um ano da Grande Tragédia de Mariana, em Minas Gerais. Até hoje nenhum dos responsáveis foi punido pela ‘justiça’ brasileira. Tome esse texto, leitor, como um humilde protesto contra o estado de coisas em quem vivemos.



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