Era
uma vez, um país muito distante, habitado por um povo singelo e crédulo, excessivamente
crédulo. Conta-se que ali, só de conventos e mosteiros, havia para cima de
quatrocentos, prova física de que acreditavam piamente em Nosso Senhor.
No
reino de sua majestade, o Rei José I, todos, nobreza e súditos viviam no melhor
dos mundos possíveis. A vida passava lentamente. O Rei e o Marquês de Pigeon, grandes
reformadores, sequer desconfiavam que hora ou outra o povo chafurdava na lama.
Na estação das grandes chuvas, tornava-se difícil distinguir porcos de servos.
Mas isso era culpa da natureza. Nem mesmo o Rei e o Marquês sabiam da lama
sazonal, visto que o sol encarregava-se de providências eficazes. M. Pigeon,
afeito às ideias esclarecidas, preocupava-se com as reformas no reino, porém,
estas, jamais beneficiavam o populacho, cujos dentes ausentes denunciavam o
determinismo da vida.
Na
manhã de primeiro de novembro, quarta-feira, do Anno Domini Nostri Iesu Christi de 1775, em orações matinais, não só monges e freiras celebravam o dia
de Todos os Santos, mas todo o povo crente também lotava as igrejas. Porém, às
9h40 daquele dia, um tremor surdo e destrutivo anunciou o fim de quase tudo. Segundos
após o estrondo, tudo se transformou.
O trovão subterrâneo pôs abaixo as igrejas;
ímpios e hereges, avessos à religião, puseram-se a correr em todas as direções.
Possuídos pelo horror e o assombro, batiam nos próprios rostos e corpos, gritando
por misericórdia. Em delírio correram para as igrejas em busca da proteção do crucifixo,
pois pensavam tratar-se do fim do mundo. Lá chegando, elas não mais existiam; o
que viram foi um amontoado de pedras, corpos, sangue, sacerdotes, gemidos e
imagens em ruínas.
Felizmente, o Rei e seu ministro, o Marquês de
Pigeon, sobreviveram em seus castelos de pedras grandes e espessas. Rei e
ministro prometeram reconstruir tudo, afinal, a colônia distante sobejava em
riquezas.
O povo desesperou-se. Assustados, muitos
decidiram partir de vez para a longínqua colônia. Atravessaram o oceano e ficaram
pé na terra que um dia fora chamada de Paraíso.
Passou-se um tempo e um desses fiéis fixou-se
em um pequeno vilarejo, por nome Bento Rodrigues. Ali, assim como os
compatriotas que haviam construído a igreja de São Bento, tentou reproduzir as
origens. Da terra extraíam diamantes e ouro, que eram enviados para a capital
do reino.
Bento, que deixava o trabalho às 17h30, ao ver
que o relógio marcava 15h30, pensou: “Mas ainda é cedo!” Não entendia o porquê
do tumulto em volta de uma das camionetes da Grande Companhia, coligada
sub-repticiamente a políticos do governo central e nova exploradora daquelas terras
nas Minas Gerais.
Aproximou-se e logo pode ouvir a voz trêmula
que vinha do rádio da camionete: a grande barragem se rompera, a lama descia
pelo vale. Perplexos, olharam um para os outros. Por um momento ficaram
paralisados. Bento, num átimo, despertou-se e lembrou-se do baú. “Não sei
vocês, mas vou para o vilarejo”, disse isso e montou em sua moto. Podia ver o baú
silencioso no canto do quarto de paredes caiadas e já desbotadas pelo tempo,
apesar das muitas vozes ali contidas.
Enquanto
dirigia desenfreadamente, podia ouvir os gritos daqueles que corriam pedindo
que voltasse, pois não teria tempo de chegar ao vilarejo. Lembrou-se dos
relatos de seus antepassados preservados nos cadernos já seculares. Pensara em
transformar tudo aquilo em livro, tornar público a saga da família que
sobrevivera ao Grande Terremoto, contar sua miséria nos arrabaldes de Santa
Rita Durão. Não teve tempo. O excesso de trabalho e o pouco estudo limitaram
seus planos. A esperança era o filho. Este sim, com ares de poeta e
historiador, haveria de transcrever aquelas garatujas e contar o périplo dos
primeiros deles a pisar no Novo Mundo.
Fez
ouvidos moucos aos alertas e prosseguiu. Ao chegar perto de uma das pontes,
notou a enxurrada próxima dali. Deu meia volta para tentar acesso pela outra.
No caminho, enterrou a mão na buzina e aos gritos avisava a todos que a
barragem havia rompido: foge! foge!, mas ele mesmo tomava sentido contrário.
Era preciso salvar o baú.
Encontrou
alguns moradores que, paralisados, olhavam para as montanhas e vislumbravam a
onda de poeira e lama que se deslocava apressada em direção à vila. O barulho
era de uma catarata. Bento pensou nas águas límpidas do Rio Doce, onde ele e o
filho passavam horas a contemplar o redemoinho claro das águas translúcidas.
Ao
chegar a outra ponte, viu-a tomada pela lama. Pouco antes cruzara com um grupo
de pessoas que buscava abrigo em um morro alto. Pensou que se tivesse alguma
chance, talvez devesse agarrar-se a ela. Enveredou-se então para o cume do
morro. De lá ouvia o barulho forte e destruidor da enxurrada. Lembrou-se das
narrativas, do trovão subterrâneo, das pessoas em desespero, do baú e do
cachorro que o esperava; as lágrimas vieram-lhe aos olhos.
Passado
um ano, Bento ainda escava o local onde um dia morou à procura das vozes,
relatos, angústias, medos, aventuras e alegrias aprisionados nos cadernos. Às
vezes ouve vozes de vizinhos que se foram misturadas às vozes do baú e aos
latidos do amigo desaparecido. Culpa a si mesmo mais que a enxurrada. Deveria
ter libertado as narrativas, mas não, fora egoísta! A idade e a memória já não
lhe permitem mais reproduzi-las.
O
vilarejo já não existe. A lama engolfou casas e vidas. O sol, providente, só
fez solidificar a lama que a chuva aos poucos dissolve em tortura contínua.
Bento
lembra-se de fragmentos das narrativas. Em uma delas, contava-se que o Rei José
I, assustado, passara o resto da vida em um complexo luxuoso de tendas. Sofrera
fobia das pedras. Aqui, nas Minas Gerais, os palácios são distantes do
vilarejo, inalcançáveis à lama, reflete. Triste, recorda-se do voo panorâmico que
a Rainha Maldi, adepta da filosofia otimista, fez pela região, das promessas da
Grande Companhia, do silêncio dos políticos ambientalistas e do baú de vozes e narrativas,
arremedo de tesouro, soterrado pela lama.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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P.S.
Dia 5/11/2016 completou-se um ano da Grande Tragédia de Mariana, em Minas
Gerais. Até hoje nenhum dos responsáveis foi punido pela ‘justiça’ brasileira.
Tome esse texto, leitor, como um humilde protesto contra o estado de coisas em
quem vivemos.
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