Não
sou muito de pensar a meu próprio respeito, mas, ainda assim, pretendo falar de
mim. Em vossos dias, tal confissão soa algo meio egoísta. Ocorre-me, neste
instante, jamais ter sido preciso que eu provasse isso ou aquilo. Nunca vivi
crises existenciais; sequer experimentei a sensação de perda ou lamentei
fracassos. Também não me lembro de ter corrido desenfreadamente em busca do
sucesso e da fortuna. Não me deixo levar por misérias reconhecidamente humanas.
O
que trago em mim de mais humano é o fato de que rio desbragadamente - dos
outros -, embora me imputeis certa sisudez e mau humor. Sim, rio do outros sempre.
Trago nos lábios aquele movimento no canto da boca que marcou a vida de alguns
ilustres dentre vós; tenho em mim um azo para o sarcástico, tal aquele senhor
cujo menu de crianças de carne tenra e
assadas em forno brando afrontou a vossa hipocrisia.
Nunca
vos tratei como estúpidos, sempre vos respeitei, ainda que a grande maioria
dentre vós o seja. Alguns poucos merecem meu respeito e admiração, considero-os
sábios. Afinal, buscaram na fraqueza de vosso caráter a explicação de vossa
existência. Gulosos, avarentos, luxuriosos, invejosos, preguiçosos, orgulhosos...
Trazeis na alma esses matizes constitutivos da vida miserável que levais;
contudo, considerai-vos perfeitos.
Admiro
os poucos dentre vós que julgo sábios. Por eles tenho sincera reverência. Esclareço
que meu conceito de sapiência atém-se mais à reflexão que à criação. Nisso
somos diferentes: enquanto prezo os pensadores, pensais nos criadores de
inovações que vos facilitais a vida, mas vos rouba a liberdade em proveito do
progresso. Tornai-vos escravos de máquinas, entregais a elas a faculdade de
pensar e acreditais que assim desenvolveis ideias.
Chamo
de sapiência e progresso o pensar. Por isso, louvo aquele que um dia referiu-se
a mim sem definições. Procurai em vossas maquinetas e ali encontrareis Santo
Agostinho. Em suas Confissões, no
Livro XI, aventura-se a tratar de mim. Dedica-me todo o capítulo; é claro que vós
vos entremeteis na reflexão, mas isso é tudo para mostrar que sobre mim não tendes
qualquer domínio; sequer definir-me sabeis muito bem.
Não
por outra razão, Agostinho, ao tratar da vossa ignorância, afirma que andais
“ao redor das ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso,
tudo o que excogita é vão”. Há menos de uma semana, haveis movimentado todo o
vosso espírito em razão de uma data que criastes na tentativa de me aprisionar -
e que agora chamais de Réveillon;
isso porque acreditais que de tempos em tempos eu me desperto. Ora, a essa hora
creio que sabeis que eu, o tempo, não adormeço, não me desperto, sou eterno e
impassível!
Prova
de minha imutabilidade e de vossa ignorância é que, mesmo assim, não sabeis
mesmo quem sou. Não à toa, o Santo Sábio pergunta: “Que é, pois, o tempo? Quem
poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o
pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto
mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele
falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem
quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo
perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.
Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada
sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria
o tempo presente.”
Vistes
que Agostinho prova o eu que disse acima: alguns dentre vós sois sábios;
contudo, a maioria padece de inelutável ignorância, tanto é que nem sequer sabe
definir-me, e, por não sabê-lo, sofre. Ainda que para muitos dentre vós seja claro
que passado e futuro não existem, mesmo assim, não desfrutais do presente - a
única parte de mim em que vos concedo relativa autonomia.
A
alma humana padece desses entreveros de espírito: ora queixa-se do passado,
atribuindo-lhe a razão de seus dissabores, ora louva-o com entusiasmo e
saudosismo, dizendo ser ele o responsável pela melhor parte de sua vida. Há ainda
almas que depositam suas esperanças no futuro e fazem do amanhã o arrazoado que
justifica toda uma existência. Ambas, a que vive no passado, ou a que vive no
futuro, esquecem-se do eterno “hoje”, tão efêmero quanto um dia. Mas nem isso se
pode dizer verdadeiro, porque esse tempo já não existe! O instante em que
começastes a ler este parágrafo já é passado. Quando me deixo escorrer por
entre vossos dedos julgais que a mim podeis medir e perceber. Mas como podeis
medir o que não existe?
Penso
na imbecilidade de vossa existência a vaguear entre o passado e o futuro.
Esquecei-vos completamente do presente fugaz. Passais toda a vossa existência à
procura do frívolo sem lembrar-vos de viver a vida. Não por outra razão, um
sábio dentre vós, ao pensar sobre vós mesmos, surpreendeu-se com a capacidade
com que perdeis a saúde para juntar dinheiro e depois o perdeis na tentativa de
recuperá-la. Dividis-me em pedaços: ora chamais-me anos, ora dias, ora horas...
julgai-vos eternos! Ora, eterno sou eu, o tempo! Vivei o presente e deixai que
eu cá ria de todos! Carpe diem! Isto
não vos proíbo! Fazei o vosso melhor e usufruí de 2017 - esse tempo de mim!
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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