Houve
um tempo em que jovens pretensamente pudicas escreviam diários íntimos, que
guardavam a sete chaves. As mães, zelosas, mas também curiosas, valiam-se de
todas as artimanhas para ter acesso ao que pensavam tratar-se de segredos
inimagináveis. Passadas mil e uma noites, vivemos a era do que se é “pra tombar, tombei” (adoro o neologismo!). Hoje, buscamos todos uma só coisa: tombar. Tombar
implica causar, mas também abolir segredos, daí os diários tornaram-se
públicos. Na internet, vidas são expostas sem qualquer cerimônia ou
constrangimento. A tela do mundo virtual exibe de tudo: dieta, vestimenta,
viagens, sonhos, decepções, vícios, virtudes, corpos e, sobretudo, intimidades.
Findo
o parágrafo, as sinapses me trazem o conto machadiano Missa do Galo. Na noite de Natal, enquanto o escrivão rumava ao
teatro - boa metonímia para uma maison de
rendez-vous -, Nogueira, ébrio de Dumas, retira-se para a sala, onde passa
a conversar com Conceição. Esta, de roupão, movimenta-se pela sala e, em dado
momento, ao reclinar-se sobre a mesa, deixa entrever metade dos braços, muito
claros, já que as mangas do roupão não estavam abotoadas. O leitor estético -
como diria Eco -, num piscar de olhos apreende o erotismo que orbita a cena. Da
cumplicidade aos cochichos, da mão no ombro a um suposto arrepio de frio e ao
silêncio, tudo faz com que o leitor se envolva em uma atmosfera erótica e
diáfana, ainda que os segredos não sejam descobertos. Nogueira, no máximo,
permite-se contar as veias azuis que saltam do braço branco de Conceição.
“De
vez em quando [Conceição] passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.”
Escrito em nossos dias, o conto machadiano ganharia uma pitada de Lars von
Trier, com fendas abertas ao furor uterino. Nada de segredos; selfies de Nogueira e Conceição
pipocariam na rede, internautas aventariam uma suposta traição, suposições
outras seriam feitas e até mesmo a morte do escrivão por apoplexia seria
creditada a Nogueira. Ou quem sabe o fim do escrivão não teria sido tramado
pelos dois?
Exposta
na rede, a história íntima do casal jamais seria esquecida, afinal, textos
publicados na internet, supõe-se perenes. Ledo engano, caro leitor. Também
nesses casos um cronista, por exemplo, pode tornar-se um proscrito. Imagine
você a escrever semanalmente uma coluna qualquer, dedicando parte do seu tempo
a refletir sobre assuntos, às vezes, nada agradáveis, simplesmente porque os
recebe como chegam e não tem controle algum sobre o carro das ideias. Vá lá,
você decide falar do quotidiano e, ao fazê-lo, predestina-se a falar da canaille, sente calafrios, os assuntos
são indigestos; por fim, resolve então lançar mão da ética que sangra das
entrelinhas, sim, porque nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra literária!
Textos
prontos, dormidos, revisados e, enfim, publicados! Mas eis que um belo dia,
você cronista resolve percorrer seus textos pregressos e descobre que eles não
mais existem; foram-se, desapareceram, provando que ainda hoje a resistência dos
incunábulos, mais resistentes que a mais avançada das mais avançadas
tecnologias. Não tivesse Machado escrito a Missa
do Galo em papel, mas gravado seu texto em disquete, CD ou outra parafernália
qualquer, hoje não faríamos ideia do frêmito que percorrera o espírito do
Nogueira. O papel e o fogo têm indubitável atração, pode-se argumentar - mas
isso é outra história.
Ainda
que tenham pregado a morte do autor, você que pariu palavras, parágrafos,
pontos, ponto e vírgulas e vírgulas, sente as garatujas como se fossem suas.
Apagá-las significa condená-lo a damnatio
memoriae. Imaginada pelos romanos e votada pelo Senado romano, a damnatio memoriae era uma lei que consistia
em condenar alguém ao esquecimento. Aprontasse você uma daquelas e fosse contemporâneo
a César Augusto, por exemplo, teria seu nome eliminado dos registros públicos,
suas estátuas banidas (caso fosse homem público e célebre) e o que é pior, o
dia de seu nascimento seria publicamente declarado nefasto.
Mas
não é preciso tanto drama, afinal, ver o apagamento de um poucos textos que
marcaram o início dessa coluna não é lá uma hecatombe. Como pesquisador, talvez
a observação advenha do fato de ver-me às voltas com o descaso e a ‘alma de
traça’ que marca e corrói nossa cultura, sobretudo quando se trava da
preservação de documentos, testemunhos e livros.
Ben,
vá lá, ao menos o chororô mostrou-se eficaz no preenchimento da página em
branco, afinal, mais forte que uma decisão deliberada, tal a damnatio memoriae, é o esquecimento
coletivo. Este, tão vivo quanto o inconsciente ou a memória coletiva, é a que
estamos todos predestinados. É uma questão de tempo, depois é tudo silêncio.
Por isso, se é pra tombar, tombei!
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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