Revista Philomatica

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Se é pra tombar, tombei!

Houve um tempo em que jovens pretensamente pudicas escreviam diários íntimos, que guardavam a sete chaves. As mães, zelosas, mas também curiosas, valiam-se de todas as artimanhas para ter acesso ao que pensavam tratar-se de segredos inimagináveis. Passadas mil e uma noites, vivemos a era do que se é “pra tombar, tombei” (adoro o neologismo!). Hoje, buscamos todos uma só coisa: tombar. Tombar implica causar, mas também abolir segredos, daí os diários tornaram-se públicos. Na internet, vidas são expostas sem qualquer cerimônia ou constrangimento. A tela do mundo virtual exibe de tudo: dieta, vestimenta, viagens, sonhos, decepções, vícios, virtudes, corpos e, sobretudo, intimidades.
Findo o parágrafo, as sinapses me trazem o conto machadiano Missa do Galo. Na noite de Natal, enquanto o escrivão rumava ao teatro - boa metonímia para uma maison de rendez-vous -, Nogueira, ébrio de Dumas, retira-se para a sala, onde passa a conversar com Conceição. Esta, de roupão, movimenta-se pela sala e, em dado momento, ao reclinar-se sobre a mesa, deixa entrever metade dos braços, muito claros, já que as mangas do roupão não estavam abotoadas. O leitor estético - como diria Eco -, num piscar de olhos apreende o erotismo que orbita a cena. Da cumplicidade aos cochichos, da mão no ombro a um suposto arrepio de frio e ao silêncio, tudo faz com que o leitor se envolva em uma atmosfera erótica e diáfana, ainda que os segredos não sejam descobertos. Nogueira, no máximo, permite-se contar as veias azuis que saltam do braço branco de Conceição.
“De vez em quando [Conceição] passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.” Escrito em nossos dias, o conto machadiano ganharia uma pitada de Lars von Trier, com fendas abertas ao furor uterino. Nada de segredos; selfies de Nogueira e Conceição pipocariam na rede, internautas aventariam uma suposta traição, suposições outras seriam feitas e até mesmo a morte do escrivão por apoplexia seria creditada a Nogueira. Ou quem sabe o fim do escrivão não teria sido tramado pelos dois?
Exposta na rede, a história íntima do casal jamais seria esquecida, afinal, textos publicados na internet, supõe-se perenes. Ledo engano, caro leitor. Também nesses casos um cronista, por exemplo, pode tornar-se um proscrito. Imagine você a escrever semanalmente uma coluna qualquer, dedicando parte do seu tempo a refletir sobre assuntos, às vezes, nada agradáveis, simplesmente porque os recebe como chegam e não tem controle algum sobre o carro das ideias. Vá lá, você decide falar do quotidiano e, ao fazê-lo, predestina-se a falar da canaille, sente calafrios, os assuntos são indigestos; por fim, resolve então lançar mão da ética que sangra das entrelinhas, sim, porque nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra literária!
Textos prontos, dormidos, revisados e, enfim, publicados! Mas eis que um belo dia, você cronista resolve percorrer seus textos pregressos e descobre que eles não mais existem; foram-se, desapareceram, provando que ainda hoje a resistência dos incunábulos, mais resistentes que a mais avançada das mais avançadas tecnologias. Não tivesse Machado escrito a Missa do Galo em papel, mas gravado seu texto em disquete, CD ou outra parafernália qualquer, hoje não faríamos ideia do frêmito que percorrera o espírito do Nogueira. O papel e o fogo têm indubitável atração, pode-se argumentar - mas isso é outra história.
Ainda que tenham pregado a morte do autor, você que pariu palavras, parágrafos, pontos, ponto e vírgulas e vírgulas, sente as garatujas como se fossem suas. Apagá-las significa condená-lo a damnatio memoriae. Imaginada pelos romanos e votada pelo Senado romano, a damnatio memoriae era uma lei que consistia em condenar alguém ao esquecimento. Aprontasse você uma daquelas e fosse contemporâneo a César Augusto, por exemplo, teria seu nome eliminado dos registros públicos, suas estátuas banidas (caso fosse homem público e célebre) e o que é pior, o dia de seu nascimento seria publicamente declarado nefasto.
Mas não é preciso tanto drama, afinal, ver o apagamento de um poucos textos que marcaram o início dessa coluna não é lá uma hecatombe. Como pesquisador, talvez a observação advenha do fato de ver-me às voltas com o descaso e a ‘alma de traça’ que marca e corrói nossa cultura, sobretudo quando se trava da preservação de documentos, testemunhos e livros.

Ben, vá lá, ao menos o chororô mostrou-se eficaz no preenchimento da página em branco, afinal, mais forte que uma decisão deliberada, tal a damnatio memoriae, é o esquecimento coletivo. Este, tão vivo quanto o inconsciente ou a memória coletiva, é a que estamos todos predestinados. É uma questão de tempo, depois é tudo silêncio. Por isso, se é pra tombar, tombei!

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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