Hoje, antes
mesmo do matinal p’tit noir, corri os
olhos por uma crônica de Leandro Karnal, cujo título homônimo à obra de
Hemingway obrigou-me a uma releitura. Trata-se de Paris é uma festa. No momento, não pude ler a crônica, mas, de
pronto, soube o que faria ao longo da tarde.
Na rua,
coloquei-me a pensar nos livros já lidos e no tempo. Às vezes a vida nos exige
demais; rouba-nos o tempo para leituras. Há tanto o que ler... Se tiver tempo,
pensava, ainda vou reler este, aquele, aquele outro... Ah, Calvino! Lembrei-me
de minha última crônica escrita; optei pelo presente e decidi reler Paris é uma festa, de Ernest Hemingway. Ao
longo de uma tarde tomei a estrada rumo a Paris fervilhante dos anos 20, época
em que Hemingway lê pela primeira vez Stendhal, Dostoiévski, Tolstói e convive
com figuras como Gertrude Stein, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald e James Joyce.
Os livros, todos alugados na Shakespeare
& Company, livraria de Sylvia Beach.
Releituras
são como lembranças de infância; nas vezes em que relatamos aos amigos nossas
peripécias infantis, nossos rostos se iluminam e nossos espíritos ganham certa
ingenuidade e um matiz mais leve, nos tornamos meninos. Reler um livro em nada
difere da releitura de qualquer outra obra de arte, tudo depende de nossa
compreensão da obra. Assim, a boa releitura sempre implica uma boa compreensão
e interpretação. Nesse processo, o que devemos fazer de melhor é exercitar a
criação.
A
criatividade é muito mais inspiradora nas vezes em que mantemos um elo com a
fonte de inspiração do artista. Ao reler Hemingway cruzei as lembranças do
autor com as minhas próprias. Nessa toada, subi a Rue Mouffetard tentando me lembrar se ainda existe o Café des Amateurs e cheguei à Place Contrescarpe. Em seguida, peguei a
Rue Cardinal Lemoire; ali, li a
plaquinha na parede que sinaliza o hotel em que Verlaine morreu e que o próprio
Hemingway, no último andar, mantinha seu gabinete de trabalho.
Também
voltei a Rue Fleurus: Hemingway por
ali transitara nas vezes em que ia ao número 27, onde residia Gertrude Stein e
sua companheira; eu, morador efêmero, costumava ir ao 33, sede do Voyage à Vivre, falar com o Monsieur responsável por organizar os curtos
passeios que fazia por cidadezinhas francesas. Nisso, desviei-me do caminho...
Lembro-me muito bem de que costumava descer a Rue Lemoire, mas, antes, da Place
Contrescarpe pegava a Rue de
l’Estrapade, errava-me pelos becos até cruzar o Boulevard Saint-Germain, chegar à Place Saint-Michel e, ao
dar de cara com o Sena, deitar uma olhadela à direita para conferir a imortal Notre-Dame.
Hemingway
perdia-se pelo mesmo quartier: passava
pelo Lycée Henri IV, ladeava a antiga
igreja Saint-Étienne-du-Mont e a Place du Panthéon, para depois desembocar
no Boulevard Saint-Michel, passar
pelo Cluny, até chegar a mesma praça
à procura de um bom café.
Mas nem
só de flânerie é feito Paris é uma festa: ali, também, fala-se
do ato de escrever. Em dado momento Hemingway confessa sua aflição por
acompanhar o relato, o conto tornara-se independente, escrevia-se a si mesmo,
ignorava seu autor. As pausas para aparar o lápis, veículo que o trazia à luz, não
só fazia acumular as aparas de madeira encaracolaras ao lado do pires, mas elevava
a ansiedade do autor, deixando-o para trás do relato e fazendo com que se perdesse
na história.
Em dado
momento, o autor toma conta da história e passa a escrevê-la, esquecendo-se do
tempo até concluí-la. Por fim, sente um cansaço bom e feliz como aquele que
acomete alguém que acaba de se entregar ao amor físico. O conto estava pronto e
era uma boa história, porém, afirma Hemingway, era preciso que dormisse. Todo
texto deve dormir.
Paris é uma festa mostra
uma visão lúcida e desencantada da vida na pena segura de um autor confiante e pleno
em seus anos de criação. Desse modo Hemingway compõe um retrato objetivo de muitos
dos escritores da época que habitavam Paris, respiravam o ar da Cidade Luz e
ali encontravam estímulo, inspiração e matéria para a criação.
Ao fim da
leitura de Paris é uma festa, no
capítulo intitulado ‘Paris continua sempre’, Hemingway afirma: “Paris é imortal
e as recordações das pessoas que lá vivem diferem de umas para as outras.
Acabamos sempre por voltar, sejamos nós quem formos, ou mude Paris no que
mudar, ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades que, ao
regressarmos, se nos deparem.” Impossível não se lembrar do célebre diálogo
protagonizado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca: “E nós, Rick?”, pergunta ela. “Nós sempre teremos
Paris.”, responde ele.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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