Revista Philomatica

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Ruínas intelectuais

Corri os olhos pelas notícias do dia e, parece-me, tudo padece de desentendimentos. O quotidiano tem-se mostrado tão esvaziado de sentido que talvez só a crônica pode traduzi-lo, uma vez que é capaz de abarcar histórias mínimas, fragmentos, cacos, ruínas, enfim, todo o entulho produzido por um aluvião de almas estilhaçadas e sem rumo.
Da janela, vejo pássaros brancos que cruzam os céus pela manhã em direção ao oeste e, no final da tarde, quando em dias claros o horizonte tinge-se de laranja e vermelho, voltam em direção ao leste. Lembro-me das cegonhas de Chateaubriand saindo aos bandos das margens do Ilíssus tal como faziam no tempo de Péricles. Como uma história leva a outra, lembro-me ainda de Chateaubriand ter classificado em duas as espécies de ruínas: as que resultam do trabalho do tempo, e as outras, dos homens.
As primeiras, aventadas pelo visconde, vão ao encontro daquelas teorizadas por Benjamin: sobreviventes das forças da natureza, surgem como legado de uma Antiguidade que para muitos hoje não passa de algo pitoresco ou um monte de escombros. As outras, as dos homens, hospedam-se em material muito mais frágil, templo de vermes que roem a carne e, muito frequentemente, o caráter.
Na fogueira das vaidades ethos se alteram ao sabor da supremacia das imagens pessoais e, acreditem, a Academia surge como laboratório perfeito onde espécimes podem ser analisados de perto e bem nitidamente, afinal, exibem-se não só em corredores, mas sobretudo em seminários, exposições, ateliês, defesas e eventos outros.
O sistema está longe de sinalizar qualquer mudança, visto que os alunos galgam degraus na trilha de seus mestres, reproduzindo passos e trejeitos. Ainda na graduação, lá pelo final, é fácil identificar os donos disso ou daquilo. Há os donos do Machado, do Guimarães, da Clarice, do Drummond, do Bandeira, do Proust, do Foucault, do Barthes... e por aí vai.
A máquina é alimentada por egos inflados e a arrogância intelectual produz seitas, grupelhos, brigas e núcleos - de estudos. Amigos começam a ser classificados já na graduação. Não se sabe bem por quais critérios, mas o fato é que a pirâmide é encimada pelos muito bons e a base pelos muito ruins; os medianos em geral são aqueles que se curvam à arrogância dos muito bons, compadecendo-se dos muito ruins.
Assim, vigor criativo e efervescência crítica, aos poucos, ganham ares burocráticos. Curiosamente, a despeito de publicações em revistas Qualis A1, que ninguém vai ler (ouvi dizer que agora a última vazão do filtro para a seleção dos muito bons será o fator de impacto), a inventividade se cristaliza. E já que falo nas publicações, eis um laboratório curioso: não raro mestrandos e doutorados começam aí a prática dos pequenos poderes, já que o parecer ad hoc torna-se um exercício de plena e ardilosa covardia, em que a perfídia é protegida pela sombra do anonimato.
Cristalizada a inventividade, uns poucos eleitos que habitam o topo da pirâmide exercem a perversidade dos pequenos poderes, fazendo da ingerência uma ferramenta opressora e de caráter destrutivo sem igual. Egos são comidos friamente, tal o prato da vingança; às vezes pelo simples fato de que as ideias não se afinam. Os donos do Machado não permitem que um imigrante da história, por exemplo, atreva-se a amar Marcela, ainda que por quinze dias e à módica quantia de onze contos de réis.
Na arena, digladiam-se as inteligências: a supremacia creditada a uns poucos, os medalhões, arrebanha todo um entourage com as caraterísticas dos antigos suivants, domésticos à disposição de seus senhores para os pequenos afazeres. Mais que absorver conhecimento, arvorarem-se críticos do sistema e/ou autocríticos, esses “discípulos” encarregam-se da perpetuação de um estado de coisas, acreditando, assim, um dia poderem encimar a dita pirâmide.
Acadêmicos, quando contestados, sentem-se mortalmente feridos, o fel invade a alma. Tornam-se inimigos perigosos, de maneira que disputas intelectuais adentram o particular. Deveriam, penso, espelhar-se na canaille, cujos afiliados, durante as campanhas eleitorais, tripudiam um do outro, mas, passadas as eleições, comem irmamente do pão assado no forno do populacho.
Gênios, porque a formação acadêmica pressupõe uma batalha cujo objetivo não é outro, alunos e professores tornam-se predadores. A seu favor contam com o fato de que a vida não são duas paralelas, mas é repleta de ruelas, esquinas, curvas e becos. À frente, vislumbram encontros e é nesses encontros que se materializam golpes certeiros.
A destruição do outro, no caso, é questão de tempo. O porquê de destruí-lo na maioria das vezes é algo tão estúpido quanto a espera; às vezes, um simples discordar, a refutação de uma ideia, o querer ser o outro, o não concordar com um estado de coisas viciado e proselitista... Nesses casos, pouco importa o trajeto percorrido pela vítima, suas ideias tornam-se indefensáveis.
A destruição é igualmente nociva: ao destruir o outro, destroem-se a si mesmos. Duvido que lá no fundo, diante do espelho, não se deem conta, ainda que por um átimo, de que não passam de ruínas.

Em tempo: cercado por amigos, estou muito bem; do que falo, vislumbro da janela, assim como os pássaros. 

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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