“Não sabemos de época em que não
fossemos como agora.” Eis o dito do Satanás shakespeariano de Milton. Depois de
correr os olhos por algumas notícias da semana, achei-o conveniente para animar
a prosa e preencher o vazio da página. O que levou a Milton não foi a canalha
de Brasília. Esta, é uma questão de estômago – dizeres do meu sacrossanto Valéry
-, até mesmo porque, em se tratando de surrupiar o erário, é sempre original.
Lembrei-me
do bardo depois de ler sobre um estudo feito pela Universidade de Stanford;
nele, estudiosos definem como lamentável a capacidade de os jovens - habituados
a toda a parafernália tecnológica de comunicação - distinguir as notícias, qual
seja, diferenciar as produzidas por fontes confiáveis das informações falsas disseminadas
na internet.
A
relevância do estudo ganha importância na medida em que se discute o impacto
que as notícias falsas têm sobre a opinião pública. Nesse ponto, discordo de
Satanás. Até mesmo quem pouco leu sobre o período pré-Revolução na França, algo
há de ter ouvido a respeito dos libelos, panfletos e da imprensa clandestina -
os gazetiers frondeurs -, que fizeram
de Maria Antonieta, por exemplo, a figura pública mais vilipendiada da história
- levando-se em conta as considerações de Évelyne Lever.
Portanto, já fomos sim como agora.
Contudo,
ainda que discorde de Satanás, dobro-me a Valéry. Raros são os sites de notícia e jornais em que grande
parte do conteúdo não seja, de fato, estomáquico. Não falo de originalidade, é
claro, mas de sensaborias que embrulham o estômago e são reproduzidas nas redes
sociais travestidas de certo ineditismo, afinal, toda surpresa é efeito da novidade sobre a ignorância, com os
devidos créditos ao reverenciado Johnson.
À
espera do carro das ideias penso na monomania que consome o cérebro do leitor contumaz
fazendo com que qualquer arraia-miúda seja pretexto para relembrar leituras, personagens
e fragmentos de histórias inesquecíveis. Desta feita, a patuleia das notícias sequer
trazia um texto, mas a foto de um estudante acendendo o cigarro em um ônibus em
chamas. Os protestos foram exponencialmente ignorados, mas a foto viralizou.
De
pronto, lembrei-me de um capítulo de Quincas
Borba, a meu ver, o mais cinematográfico dos livros machadianos. Eis o contozinho:
A história do casamento de
Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique
desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse
a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até
necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e
que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia nas
estrada; a dona – um triste molambo de mulher, -chorava o seu desastre, a
poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu
o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; é
tudo o que eu possuía neste mundo.
– Dá-me então licença que
acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente
emendou o texto original; não é preciso estar embriagado, para acender um
charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! – Chamava-se Chagas. – Padre
mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de
que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando, esta
outra: – o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, – a
ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias
consoladoras. Bom padre Chagas!
Ficção e realidade
parecem às voltas com o mesmo assunto, mas entre elas não entrevejo vizinhança
maior que vá além do cigarro ou charuto; para o fumante, algo equivalente ao
óbolo para se chegar até Caronte.
Machado de Assis,
contudo, ao reproduzir o contozinho nas
páginas de Quincas Borba, volta a
tratar das ‘bandeiras particulares’ (em muitos de seus escritos justapõe as
bandeiras públicas às particulares). Sob fina ironia, vemos o homem acender seu
cigarro na calamidade particular, ainda que demonstre certo respeito ao
princípio de propriedade.
O estudante, no
caso, do particular adentra as bandeiras públicas. Tratava-se de mais um
protesto contra o governo, porém, neles tem-se aplicado o mesmo estratagema da
malta política: é público? é de ninguém, portanto é de todos. Não existe
dinheiro do contribuinte, mas dinheiro público e, sendo público, apropriam-se
dele sem o menor constrangimento como sê-lhes pertencesse (falo dos eleitos).
O estudante, afirma
o fotógrafo da Reuters, não fazia parte do grupo que relativizou o conceito de
propriedade; o que fez foi aproximar-se calmamente, retirar o cigarro do bolso
e acendê-lo. Fotografado no instante preciso, alçou-se celebridade. Entrevistado,
ato e discurso divergem: alheio às reivindicações, firmou a desobrigação de
portar um isqueiro; célebre, disse que o foco deveria ser nos protestos - no
que concordo.
Concordo sobretudo
porque pouco se falou da utilidade das catástrofes. A violência presente nas
recentes manifestações não só tem desviado da caçapa as inocentes bolinhas de
gude, mas também feito alvo cabeças de jornalistas e transeuntes que se
arriscam à frente do furacão. Ato justo, democrático e tolerante, afinal, é
preciso desobstruir o caminho; e, o sangue alheio, ainda que pouco, matiza
cenas e é sempre necessário.
Dentro da Câmara,
em outra foto, participantes de um coquetel, próximos a uma das janelas, indiferentes
à explosão de bombas, às bolinhas de gude e à correria dos manifestantes,
deliciavam-se em meio a quitutes, canapés e champagne,
prova de que ambos, povo e malta, continuam a confundir bandeiras particulares
e públicas.
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Crédito foto: Adriano Machado/Reuters
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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