Confesso
que hoje não pretendia sequer resvalar na canaille.
Mas não é que certa senadora, acima de qualquer suspeita, veio a público
afirmar peremptoriamente que em seu partido não há bandidos? Li o que li em tom
de ironia, afinal, só essa figura de retórica tem o poder de negar afirmando,
como parece ser o caso. É tudo tão óbvio que nem mesmo a ironia de situação,
acho, dá conta do desejado.
Mas
voltemo-nos ao Altíssimo. Em minhas aulas de literatura tratava do estético,
essa preocupação mais de cunho individual que de sociedade. Conversa vai,
conversa vem, comentávamos alguns aspectos da originalidade, quando lembrei-me
daquela estranheza que jamais assimilamos, teorizada por Bloom. O assunto pulou
para a genealogia das obras e de arrasto veio o Gênesis. Curso de Letras,
discussão sobre livros, literatura e discursos, e a tradição religiosa se impõe
como provocação ante a compreensão da ficção.
Melhor
fora não imaginar o mundo sem Deus e dar asas ao existencialismo sartriano,
porque aí as suscetibilidades e a fé destruiriam qualquer raciocínio. Diante
disso, trouxe Voltaire com sua célebre expressão Si Dieu n’existait pas, il faudrait l’inventer (Se Deus não
existisse, seria preciso inventá-lo.) e tudo continuou como se esperava.
Mas
o fato é que a ambivalência entre o humano e o divino marcam os textos bíblicos
desde a origem, sendo esta uma das características de sua originalidade. O
susto vem da compreensão de que a adoração de Deus por judeus, cristãos e
muçulmanos é a adoração de uma personagem literária. E não me acusem de blasfêmia,
pois só estou a papaguear Bloom.
Acredita-se
que a autora original dos livros de Gênesis, Êxodo e Números tenha sido J ou
Bathseba, a rainha mãe de Salomão, uma hitita tomada pelo rei Davi, que, depois
de cobiçá-la, deu um jeito de “apagar” do mapa seu marido Urias, enviando-o
para um combate mais que conveniente.
É
claro que a ironia de uma hitita escrever os livros basilares da Torá, e não um
israelita, deveria ser corrigida, afinal, o Javé de Bathseba, também conhecida
por J, é humano demais: é vingativo, come e bebe, delicia-se com suas
estripulias, é ciumento, proclama sua imparcialidade ao mesmo tempo em que se
coloca ao lado de seus protegidos e così
via, de modo que Deus, Zeus e todo o pessoal do Olimpo irmanam-se em ações
e humores, relativizando o divino e o pagão. E aqui trago um trecho sublime de
Bloom: “Quando [Deus] conduz essa malta [os israelitas escravizados no Egito]
enlouquecida e sofredora pelo deserto do Sinai, já se tornou tão insano e
perigoso, para si mesmo e para os outros, que a escritora J merece ser chamada
de a mais blasfema de todos os autores que já existiram.”
Não
à toa, o que Bathseba escreveu foi censurado, apagado, distorcido e revisado
inúmeras vezes ao longo dos séculos até que tivéssemos os livros tais como os
lemos hoje, sendo Ezra o último desses redatores, logo após ter retornado de seu
exílio na Babilônia.
Bathseba
dá azo a uma liberdade irônica ao retratar Javé (Deus) que, é certo, escandalizou
sacerdotes e escribas, portanto, o melhor a fazer era reescrever tudo ou a
maior parte.
A
narrativa de J, até onde se sabe, termina quando Javé enterra Moisés, com suas
próprias mãos, numa cova anônima, sem sequer tê-lo deixado botar os pés na
Terra Prometida. O relato de J, que transcende a ironia e a tragédia, traz Javé
como uma personagem que se aflige por ter escolhido um profeta obstinado,
obrigando-o mesmo a tentar assiná-lo gratuitamente enquanto a malta vagava pelo
deserto.
Mas
evitemos outros sustos: não falemos da personagem criada pelo evangelista
Marcos, ou da audácia de Maomé ao registrar a voz de Alá em detalhes e
extensamente no Corão. Relativizemos. Atenhamo-nos ao tamanho da nossa
sociedade fluminense (como diria Alencar) e, ainda assim, não falemos da imagem
encontrada nas águas no Rio Paraíba do Sul. Não olhemos para Padim Ciço,
conselheiro de Lampião!
Quanta
pretensão divina em reles humanos!
Mas
vá lá! Por mais que o caldo entorne, ainda temos de um lado Voltaire a dizer que
há uma fé para as coisas espantosas e outra fé para as coisas contraditórias e
impossíveis; e do outro lado a canção, que teima em nos alentar garantindo que
“a fé não costuma faiá”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário